Profissão de Fé 2014 em consideração à ideologia culinária da Santa Coxinha da Limitada Imaginação vigente:

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Coxinhas nossas que voais pelos céus, que estais necessitadas de novos recheios e intenções, atendeis à sugestão de vossa própria casa: por piedade! Que um refogado do tambaqui amazônico se abrigue em vossos âmagos da mesmice! Não sois tão fanáticas pelos Atalas e seus geniais Doms paulistanos? Então! De tão cansadas em sobrevoar o selvático buraco verde instalado em vossos mapas mentais à la século XIV, em ordem de suprir o Outro oco interior na repetitiva fúria consumista que vos aguarda naquela península florida mais ao norte, que de vossa presença encontra-se já descolorida das nuanças ianques, que tal se vos achardes no meio termo do encontro diluviano-e-de-tempero-tropical do charco tépido negro-colombiano e barrento-peruano do vosso proto-Amazonas?! Ah, infiéis coxinhas, trust me!, sereis iguarias mais finas e menos iguais a toda chatice do demais! Amém!

A Copa e seu significado na Bahia

Mais que qualquer outra na América Portuguesa, certo que a Cidade da Bahia é onde o povo mais se apropria da brasilidade, midiática, com tudo de bom e ruim que acarreta ao portador esta identidade cultural. Melting-pot que se originou nas viradas de olho que Carmem Miranda assimilou de Dorival Caymmi e espalhou pro mundo por meio de Róliúdi.

É o que é que a baiana tem, sim. Todos temos.

Não é à toa que a divulgação da cultura brasileira insista em projetar esta faceta do sujeito frajola que ora também nos habita. Não chega a convencer muitos de nós de que coletivamente sejamos tão faceiros quanto a Brazilian Bombshell, simpáticos joões valentões praieiros, mestiços criativos em jangada de sonhos à caminho do mar, oriundos da terra do samba, mulatos e futebol? Tudo isso tem no tabuleiro da Roma Negra do Caê; onde sempre cabe botar castanha de caju e um bocadinho mais.

Baiano me descobri por estar fixado até o fim dos meus dias no folclórico cancioneiro dos Caymmi ou empanado no ouro em pó de uma de suas 365 igrejas – na de São Francisco, que é a mais linda, não se pode mais casar… Ecoo baianamente na perfeição vocal do João Gilberto, apaixonado que fico por cada moça recostada nas palmeiras da estrada antiga estreita e torta, daí desvirginado me assumo de vez a nova Tieta do Agreste, e depois me nauseio na miséria dos sertões do Glauber, rochoso sem deus a sós com o diabo sentado entre as pernas do Velho Chico; é quando grunho Meu Nome é Gal jurando ter nas costas a afinação da Gal; flerto com um negão no Olodum do Pelô, e depois rezo pelas vias das dúvidas e prezo pela eternidade da Dona Canô.

De nada valeu, mas me benzi antes do jogo com a Mãe-Menininha do Gantois; amarrei a sorte dos argentinos no altar da Iemanjá, verdadeira celeste e branca como a Conceição que mora no mor-altar; tropecei pelas ruas sujas dos predinhos da Baixa, sem eira nem beira nem tinta, onde se fareja em todo esplendor a decadência econômica, senti medo de uns pobres zumbis contaminados pelo vírus do crack, pra depois me assombrar de vez à frente do casarão bafudo que ressentia seus velhos tempos com o Imperador.

E no regresso ao aeroporto, antes do caminho derradeiro e tingido pelo verde fenomenal que emana dos feixes no bambuzal, constatei as mesmas periferias do meu Sudeste, sem gabarito ou reboco, vizinhanças pós-bombardeio sem guerra, padecendo da velha e triste pobreza sistêmica, ouvi alguém lendo com perplexidade o aumento exponencial de seus índices de homicídios estampados no jornal local, neste lugar com tradição de dados bem menos alarmantes e etc.

Enfim, eu vim dessa Bahia, e algum dia eu volto pra lá, talvez assim me reinvente no ócio deslocado do eixo repetitivo-neurótico da so-called excelsa vida shóp-cents. Não que lá na Bahia eles não existam – mas eles não são tão essenciais pra fazer luzir a própria estampa. Conte-se com meu favorito Caetano que dizia: “veio e não veio quem eu desejaria, se dependesse de mim: São Paulo em cheio nas luzes da Bahia, tudo de bom e ruim – era o fim, é o fim, mas o fim é demais também…”

Mas e a Copa? Ah, esse legado tá sendo massa, meu rei!

Não ao racismo. Mas chamar Diego Costa de VIADO o tempo, ah, isso pode!

O Troféu Abacaxi dessa Copa infelizmente vai para a torcida brasileira nos estádios.

Nojento o bulling que fizeram com o Diego Costa hoje na Arena Fonte Nova em Salvador, no trágico jogo para os ibéricos por quem nutro enorme simpatia.

Mas o assunto trágico mais importante do dia, ao menos pra mim, é bem outro: trata-se da história de um povo que levanta uma grana para assistir a um jogo de Copa do Mundo, e que infelizmente não tem a mínima educação e mal sabe se portar no espaço democrático de um estádio.

Pior que ler comentários em notícias do Uol é ver jogo em que há alguém indesejado na festa, alvo fácil a ser execrado. Ontem vaiaram a entrada de uma equipe e mandaram a Dilma tomar naquele lugar; hoje chamaram o Diego Costa de VIADO a todo momento em que ele encostava na bola.

Amanhã poderá ser você, é claro. E duvido que vá gostar. Essa torcida está vaiada e já ganhou o triste Prêmio Ignóbil dessa Copa. Uó.

Sem ingressos pra jogo do Brasil, mas com um país a descobrir.

O futebol é parte fundamental dos alicerces da identidade brasileira. Duela a quién duela. Tem gente que não aceita isso muito bem, considerando que ao ópio do povo é devotado energia em demasia, enquanto matérias mais releventes para a evolução de nossa sociedade sejam sempre relegadas a segundo plano. Pode até ser uma espécie de falha trágica nossa, mas o fato é que o futebol é traço de união da cultura nacional, assim como a língua portuguesa, a MPB, o arroz com feijão, o cafezinho no coador ou a canga estendida na praia… E mesmo quem odeia futebol – sorry! – acaba se traindo e, por meio da famosa negação psicanalítica, adorando-o como todos os demais.

Fazendo um paralelo politicamente incorreto para os tempos atuais, lembro-me de uma anedota atribuída ao espanhol Pablo Picasso, na qual ele repreendia seu filho durante uma tourada, quiçá símbolo mais forte daquele país ibérico: o rapaz horrorizava-se com o acosso do touro pelo matador e acabou levando um pito do pai-pintor malaguenho na linha “é sua cultura, goste-se dela ou não”.

Well, well, well…

Depois do feito de 1958, quando um certo garoto negro de sorriso estridente, no auge de seus apenas 17 anos, liderou a equipe de um pobre país latino-americano em vitória épica sobre os suecos, donos da casa na ocasião, a significação do Brasil num mapa-múndi passou a ser sinônimo de país do futebol. Duela a quién duela. Digamos que somos educados desde miúdos a apreciar o esporte bretão, mundializado mais que qualquer outra modalidade desportiva.

Mas e daí?
Daí que a Copa do Mundo se tornou um vício.
Daí que receber a Copa é o máximo pra quem brincou nos campinhos de terra de nossos cerrados e periferias e/ou decorou as ruas da infância com penduricários verde e amarelo.

Daí que, mesmo não tendo consigo ingressos para partidas do Brasil, remediei a falta de sorte naqueles sorteios com jogos de outras equipes – o que importa, afinal, é ver a competição!
Daí que vou aproveitar o climão da Copa e fazer um mini-tour por quatro cidades-sede (Salvador, Manaus, Fortaleza e São Paulo), seis aeroportos e três estádios. Cidades, aliás, que nunca visitei na vida.

Enfim, a Copa ressuscitou o Tour do Alex.

Mais do que nunca, é preciso viajar. Vamos nessa?!

Diálogo entre putas na Plaza de Chueca, Madrid!

– Hilda Fura-olho do cão!
– Grita baixo, ô Antonieta da Peste.
– Banquei tua passagem, ex-pão-com-ovo Zona Leste!
– Não me incorpora a brasuca barulhenta, senão…
– Ou então o-que-o-que, ladra de macho alheio!
– Te denuncio pros polícia da praça, vagaba sem-papéis.
– Traíra das amiga por passaporte e cama c’o véio!
– Se for pra ser cínica, “vão-se os dedos, fic’os anéis”.
– Mas antes abr’outra boceta nessa cara lavada à peroba!
– Aqui não tem lei da peixeira, tercermundista covarde.
– Poder de vingança é mais antigo, pérfida duma ova!
– Deixo paga a cuba libre, amostra da minha bondade.
– Hilda, num levanta ainda, perra bandida!
– Tieta, volta pra internet d’agreste vida.
– !
– .

A transex magrelinha do Camboja: surpresinha na Virada de Abel

A transex magrelinha do Camboja: surpresinha na Virada de Abel

Abel arriscou um corredor da morte em aposta lotérica particular de Ano Novo, transformando-se numa múmia de pó puríssimo comprado nas porosas fronteiras do Acre, a que pretendia exportar a Phuket, empacotado em ataduras minuciosamente aderidas ao corpo como se as substituísse por confortáveis roupas de baixo; quem o tocasse juraria tatear um travesseiro responsa de penas de ganso. Doze quilos da droga, bem distribuídos ao longo das pernas finas, tornearam seus gêmeos geneticamente afilados, deram porte atlético ao tronco e nádegas a uma bunda dantes apelidada de gaveta; o padê transgênico lhe renderia pouco mais de milhão de dólares, limpinhos, com os narcos que conhecera na primeira passagem pela Tailândia quando era reles mochileiro, dá pra viver sussa por uma caralhada de anos com esse plano infalível de aposentaria da vida ilegal, e com a sorte da cidadania cisplatina que herdei da minha velha, inauguro coffee shop em Punta, que viva o guerrilheiro Mujica!, vangloriava-se ainda ao taxista, que nada entendia daquela exaltação, enquanto conduzia-o ao André Franco Montoro airport.

O rapaz engoliu dois lexotans e meio de cinco miligramas antes de enfrentar os controles da Polícia Federal, outra dose cavalar de ansiolítico na área de trânsito do aeroporto de Bangkok, tomava tais precauções sempre e antes de se encontrar com os da barra-pesada, nada mais indicado para ocasiões de forte estresse, a prescrição tornaria a funcionar de modo que as mãos não balançassem o passaporte um milímetro na hora agá, nem tiritasse os chocalhos de prata do punho fino e elegante, tudo de acordo com os conselhos do psiquiatra-amigo que lhe vendia de tempos em tempos o receituário.

Levou um pequeno susto em Bangkok ao ter de encarar a fila do “health control”, no qual um cartaz porcamente escrito à mão listava países tropicais com áreas epidêmicas de febre amarela, incluído ali o Brasil. Temeu que a sorte tal como o fuso tivesse virado vez, mas tudo não passou de mera praxe burocrática: o senhor esteve febril nas últimas quarenta e oito horas? Calafrios, náuseas ou vômito? Não, não e não, só o cansaço de vir do outro lado do mundo mesmo, seu bosta, emendou em sorridente português. Ok, acesso concedido ao paraíso.

Na festa franca da vitória, com a transferência milionária para offshore caribenha confirmada e a megasena da virada no papo, Abel entregou-se a um rega-bofes em Patong Beach com seus comparsas asiáticos, claro que sem nada cheirar – profissional que se preze não comete desses deslizes –, e externou o desejo de passar o réveillon mais tranquilo de sua vida nas imediações do famoso templo de Angkor Wat, moço mimado, talvez pra passar a limpo seus pecadinhos mais recentes. Os colegas de trabalho se entreolharam, loucos que estavam por pregar uma peça no incauto brasileiro, pronto recomendando-lhe a mais bela guia de todo o Camboja do mundo inteiro, worldwide international. A despeito da altíssima procura nessas datas festivas, em menos de dez minutos o secretário do chefão tailandês entrou na web, naipe bafudo que detinha, comprou-lhe passagem executiva, reservou cinco estrelas e uma beldade, cujo nome de guerra era Suri, de certo em homenagem à filha de Tom Cruise.

De fato, Abel se embasbacou com a beleza de Suri, tigresinha de bengala e pele acobreada, olhos delineados idênticos aos de um alto-relevo khmer, enquanto a observava sem que ela ainda o reconhecesse na fila canseira de imigração, segurando uma plaquinha na área receptiva do aeródromo de Siem Reap com a inscrição garrafal BELA, anagrama equivocado, porém auspicioso como as tábuas de salvação.

Durante o dia de visitação, a beldade narrava-lhe as maravilhas do maior complexo religioso do mundo num inglês vagaroso e sensualmente pausado; Abel só se concentrava no movimento de seus lábios de boneca oriental, traçava inaudito estratagema de como abordá-la à noite sem parecer ofensivo, pois não sentira abertura para qualquer gesto mais ousado.

Porém na mesmíssima noite ela surgiu no lobby do hotel vestida de dançarina apsará, como se flutuasse sobre as águas calmas de um lago tropical, ricamente ornada em seda amarela e fúcsia, nada do khmer vermelho, em penduricalhos que lembrariam ouro encrustado por pequeninas jades e maquiagem que lhe conferia ao rosto textura da porcelana mais delicada.

Na hora da virada do bafo do ano, ela bailou nos jardins do hotel pra ele, que já entornara sozinho duas garrafas de tinto chileno, bastante comum aliás no Sudeste Asiático – antes de beberrão, sou a bílis forte dos sertões. Beijou-o na língua branca. Ousado, sem atentar ao bafo ausente de cremes dentais, Abel retribuiu-lhe com um toque na fronteira das partes íntimas. E finalmente teve seu momento de revelação como o Luís Melodia na canção da Magrelinha que idolatrava ouvindo Rádio USP: nem a lua nem o sol adivinhariam o desejo bestial e naturalista, coisa de anos 1880, que era uma lady boy aquela menininha de vestigiozinho de corpo masculino pendurado e durinho. Abel surpreendeu-se por não sentir rejeição ao toque fervido e foi mucho más pero mucho más lejos, desse preconceito que ele não desfaleceria. Ela encabulou-se em breve explicação cristã, (extemporânea atreveria-me): Seus amigos avisaram você, não foi?Minha cirurgia está marcada para o próximo mês em Chiang Mai, linda. Ele não deu bolas, interrompeu-a com um beijaço do mais intenso, enquanto repetia para si “mesmo se ela não ‘o cortasse fora’, continuava sendo minha gatinha agora e pra sempre e amém, até meu rabo pra ela também”.

Encaixando-a ali em seu colo animado, Abel cantarolava num improviso rico e feliz sua falta estranha de originalidade: “no coração, no coração, no coração do Camboja, no coração, onde já mora um brasileiro que não quer nunca mais voltar, de jeito e maneira”.

A casamenteira de Quéops

A casamenteira de Quéops

Havia dois anos que Dona Regina comparecera a um duríssimo encontro com a depressão, espécie de coma da vontade das alegrias, e desde então não lograva despedir a indesejável visita do ensolarado apartamento a poucos passos do areal do Gonzaga. O devotado marido fora ceifado numa saída de banco em Santos, onde ambos aposentados se refugiaram após conquistar seu eldorado no interior de São Paulo, de onde regressaram pelo caminho do mar, rumo ao mesmo porto que os recebera pequerruchos nos anos 1950, com o justo regozijo dos que galgaram a Muralha e viram correspondidas suas primeiras expectativas. Depois da tragédia pintada em cores berrantes do trópico local, a pobre mulher perecia na desesperança das hécubas, desancada de descendentes, pois não fora agraciada com as bênçãos de Cibeles.

Felizmente a melancolia tirou dia de folga quando a vizinha Iolanda, insistente qual pregadora cristã de porta em porta, a arrastou para um bate-chinela inaugural da melhor idade num clube reformado adjacente à orla. Na falda do salão de baile, Dona Regina enturmou-se na mesa de convivas entusiasmados pelo carisma de Iolanda, que sentou a viúva estrategicamente ao lado de outro viúvo, o senhor Alcides, gafieira de mão cheia e conversador que lhe fez a corte numa prosa que pronto coriscou para o assunto de viagens, passatempo favorito daquela patota de seniores. Nunca me encorajei de entrar no avião, seu Alcides, e depois de velha que não me enfuno dessas ousadias, Que nada, minha dileta, se segurar sua mão tenaz a ponto de não desgrudar, o sonho da senhora principia antes mesmo de dormitar com o mantra calmo do motor e o embalo que reproduz a trepidação leve, Sabe que não tem precisão de me chamar senhora, Alcides, Que bom que pra você sou só você também.

Pela primeira vez Dona Regina não experimentava a culpa do primeiro estágio da viuvez, assim não se censurava por prazeres não partilhados com seu querido e finado; mesmo não bailando pelo salão naquele ocaso de sábado, uma fresta na persiana permitiu que o sol lhe lambesse uma ferida da ausência, labareda tépida que forjou em seu rosto sulcado pelas enxurradas do luto um novo sorriso. Também por prima ocasião, Iolanda testemunhou a alvura dos dentes legítimos na boca da amiga, e mais que um calor de abrasar longos meses de eclipse n’alma, o inesperado convite de Alcides para que a ex-professora de educação artística se juntasse ao grupo que projetava um cruzeiro pelo Nilo egípcio fulgiu delicado como uma aurora no inverno boreal – insuflou-lhe uma brasa esquecida de vaidade. Dona Regina aquiesceu, e Iolanda sentiu firmes os músculos de seus dons de casamenteira.

Diferente da suspeita inicial, nossa viúva por fim alegre não temia o sonho de Ícaro, absolutamente, tanto que se empolgou em alarido mental no preciso momento em que o Boeing descolou-se da pista de Guarulhos e flutuou urubu-rei. O próprio Alcides parecia mais apreensivo que a possível namorada futura, quiçá por isso não tenha quisto soltar sua mão durante o restante da jornada aérea.

Iolanda mostrou-se uma cicerone perfeita logo na área de trânsito do aeroporto de Istambul, de onde embarcariam numa segunda aeronave ao Cairo, auxiliando seus amigos e, em especial, o duo de viúvos como se fosse a filha coletiva do grupo.

A poucos minutos da aterrissagem, assim que o piloto anunciou aos ocupantes das janelas à esquerda que estes eram os eleitos na loteria dos assentos, com a visão das Grandes Pirâmides na aproximação máxima de um Google Maps sobre a árida esplanada, Dona Regina emocionou-se taquicárdica e em arrepio de beijo suave no pescoço, Eu que não imaginava acariciar Quéops, Quéfren e Miquerinos com o olhar além da telinha em alta definição num History Channel eu que nem morta amontaria estes dragões a jato eu que de mãos dadas com esse momento com este este hom… E antes que o remorso como punição embaciasse sua vista, ele se adiantou e disse que os dois companheiros apartados de tão sublime instante deveriam estar radiantes por eles, caso uma consciência além-túmulo sobrevivesse ao desaparecimento como cultuavam os egípcios antigos.

Com o amadurecimento dos dias, outras pequeninas lindezas se acumularam na viagem quais grãozinhos de areia que em bodas com Éolo desenham as formidáveis dunas do Saara, e a vitória da intuição de Iolanda coroou-se no interior da magnífica Pirâmide: na estreitíssima entrada que dá acesso ao monumento, Seu Alcides descobriu que temia um terremoto, E se um soterramento me calasse o bom humor sob estes milhões de toneladas em pedra, bem quando o Amor ponteiro voltou a me flechar, diacho de destino essa preocupação traçada em mãos mais suadas que garrafa congelada transudando a quarenta graus na enseada do Zé Menino, vista turva perna bamba vixi-maria que escadaria íngreme sobe bom menino Alcides, meu filho, finge que tá tudo bem que quanto mais rápido for mais rápido você volta.

Dona Regina notou à beira do sarcófago vazio, no âmago claustrofóbico de Quéops, que ela suava de amor – e seu arfante namorado, de pavor. Em retribuição ao gesto que a salvou na fobia no voo, ela segurou-lhe a mão o mais junto que pôde das cavidades latejantes do próprio peito, enquanto lhe acalmava cantarolando uns versinhos de Aida “questo fervido amore che oppressa e schiava, come raggio di sol qui mi beava…” até a saída do túmulo.

Eles já regressaram ao Brasil e no fim deste mês vão à Igreja da Natividade.

As pegadoras de Luxor

Ou as turistas do amor no Egito

Jorge estava odiando Luiza à hora do jantar naquela ribeira coaxante do Nilo, a um pulinho do centro de Luxor. Principiou-se a sinfonia de minaretes e grilos, cacofonia e fuga para sua entrega à melancolia, que um vago arrependimento lhe abatera pela primeira vez ali à luz de velas vermelhas assombradas por mosquitos com sua esposa inda acesa. Cedi a um casamento morno pela promessa de salvação com a mulher boa sincera farta de bossa que ora me afastou de nefastos caminhos, isso podia ter destruído minha reputação de jurista antes mesmo de ser aprovado em exame público, era tão linda minha egiptóloga professora da USP no princípio do afeto quando me livrou de becos e recaídas na retorta noite de São Paulo é ela que age agora de modos tão-não-sei por-que-tais ela passou os dois últimos dias afoita em nossa primeira viagem longa e eu não posso nem quero sentir-me um bichinho ingrato enquanto ela for minha for minha guia de primeira classe fez-que-fez para visitarmos os templos todos num raio de cento e cinqüenta quilômetros a partir deste lugar, sinto culpa por não partilhar de seu fogo por Ramsés II e a rainha da paz Hatshepsut, custa-me prestar-lhe atenção quando interpreta os hieróglifos dos muros incandescentes amarelos, de seus olhos semicerrados pela luz do deserto, das minhas mãos desidratadas em calor argiloso de agosto, ai como arde o desamor em flor, não sei bem se está clara a culpa o desinteresse e essa ausência da palavra cortês, qual me denunciei na véspera da boda no tumulto de um sonho cruel no qual eu fugia de seu farto colo nalguma hora agá gritando-lhe com indiferença que não a desejava mais feito tantos homens que se queixam no pós-coito da mulher outrora amada.

Por sua vez, Luiza fingiu não captar o tédio nu-outro e discorreu com força do entusiasmo sobre o passeio em balão tapete mágico no qual o casal surfaria as primevas horas que abrem alas à dedirrósea aurora seguinte daí ele deu de ombros que não repousaria direito por causa do passeio em balão na madrugada que em breve rebentaria enfim ele clamou do tempero da comida, que injusto ela logo defendeu suas escolhas que era este o melhor restaurante da gastronomia local fruto do casamento feliz de um mestre-cuca egípcio cansado do caos do Cairo e sua chef irlandesa apaixonada pelos da margem direita do rio-dádiva, assim deu que ele arrebatou do ar o ataque sutil da fêmea ofendida e pediu a conta sem sobremesa café ou chá açucarado de hortelã em demasia. Caminharam até o jardim do hotel flanqueando a barranca do Nilo como em filme mudo estrelado por múmias. Ela finalmente chiou do calor e ascendeu ao quarto tendo por álibi o ar condicionado e a precisão de descansar para a vindoura aventura nos ares, enquanto ele só carecia de outra dose cavalar de tônica-e-gim praguentar a noite insone que teria pela frente por fim.

No entanto este Jorge confuso não esquadrinhava o bar à procura de mais mulher simplesmente, buscava outra companhia para esquecer a dúvida acesa de um vaga-lume à deriva num ilhéu de separação, se ela dorme e desperta automática como médico plantonista, para mim, virar noite é preferível a madrugar às quatro em ponto da matina, depois aqui na barra do bar o papo com Mahmoud brilha sempre no vozerio das alegrias, estudo árabe com eles hoje decorei ámar arbatashar, lua quatorze, formoso jeito de encantar a menina pois que ela emprestou a lindeza do plenilúnio em décimo quarto dia do islâmico mês.

Naquele instante avizinhou-se de Jorge uma senhorita Anne, mais adorável pela simpatia que pelo padrão-beleza ocidental, atarracada que podia ser considerada outra espécie de lua cheia: escocesa de frugal cabeleira ruiva em rostinho redondo de pele vermelha e risonha, apresentadora de TV em Glasgow, excitando mais e mais sua verve a cada gole de um álcool forte e assim me narrou sua paixão por Ahmed rapagão robusto que ela visitava por oitava vez naquele ano por sorte voava-se direto do Reino Unido ao Reino dos Faraós durante plena revolução dos jasmins sem cruzar pela Praça Tahrir e com ele ela forjava planos de habitar perto do Vale dos Reis compraria um dois-quartos em frente ao rio-deus pela bagatela de trinta mil libras logo em seguida chegou sua amiga Cristina alemã loura septuagenária, também pegadora de egípcios, porém sem nada muito romantizar.

Mudaram-se à mesa de Cristina que entornava espumante e a cada taça virada ficava ainda mais estrábica e disparava sobre a mesa seu mantra copta tonight-I-will-fuck-fuck-fuck batendo uma mão contra a outra em gesto vulgar de cópula, de forma que Jorge em seu íntimo se escandalizou bem.

O namorado de Anne baixou no bar e carregou-a pra dançar.

Momento sublime de Jorge e Cristina a sós.

A septuagenária pediu encarecidamente que Jorge abandonasse a mesa antes da chegada do paquera trintão: Ahmed é bofe ciumento, deus-nos-livre se vir você pelejando em cima de mim, não queima meu filme, seu moço, volta pra barra fingindo que nunca mais me viu.

Jorge comprou um charuto e foi espantar sua caretice com os pernilongos do jardim.

Rebeca e sua inesquecível visita de médico ao Taj Mahal

Visita de médico ao Taj Mahal

Rebeca planejou visita expressa a Nova Délhi e Agra. Sou avessa a perrengues, nem passa perto da minha lista uma Índia não confio em comida e água e desserviço de quinto mundo.
Porém Rebeca enciumada do passeio da melhor amiga mudou de ideia. Vou de circuito básico, fim de semana nos arredores de Paris, depois compras em Dubai, e por fim um bate-volta pra Índia.

Rebeca não topava com o destino, apenas sonhava o Taj Mahal, quando aos quinze se deliciou numa compilação de contos de As mil e uma noites. Na capa figurava o mausoléu indiano talhado em mármore branco, precisava daquele troféu.

Rebeca antenada sabe que o Taj não se relaciona diretamente à história de Sherazade, pelo simples fato de que o monumento ainda não resplandecia às margens do rio Yamuna quando o clássico da língua árabe já havia amanhecido para as letras.

Rebeca lera tudo sobre o Taj no imaginário e ideal estético e arquitetônico da Pérsia, parte significativa da arte muçulmana que engloba inclusive o mundo árabe. Só não quero sentir cheiro de especiarias suor chá preto e fezes de ratos e outros.

Rebeca pensava horrores da Índia.

Do aeroporto ao hotel no Jaguar exclusivo do transfer, tudo em constelações de no mínimo seis estrelas, uma noite em Nova Délhi, no dia seguinte day trip para Agra, volta direto ao aeroporto, nenhum minuto mais no subdesenvolvimento.

O que a gente não faz só pra ticar um país no mapa, esse aeroporto dá um banho no de Guarulhos e esse povo esquisito que nem sabe o que é banho, que cheiros embriagam meu nariz, menos mal que fico quase nada neste pardieiro, tomara que não chova porque assim minhas fotos hão de brilhar no instagram, ai calor amazônico que não me abandona nem em viagem de férias liga o ar condicionado no máximo please eu só mereço o máximo daí faço check-in expresso pois tudo está expresso nessa viagem, desmaiei na king size e despertei de rosto afogueado com o sol sobre uma cidade verde, esse sonho de Nova Délhi nem parece capital da Índia de tão limpinha nem parece a África essa cidade britânica com parques britânicos emaranhados por ruas em direção inglesa, comecei a me trair e até a gostar cadê o Jaguar que dentro em três horas estarei em Agra finalmente estrada boa de interior paulista isso que a amiga me garantiu, passa antes embaixada brasileira aqui, representação americana ali esses diplomatas funcionários públicos sórdidos que passam muito bem a vida com dinheiro dos meus impostos.

Rebeca só não contava que antes de cair na pedagiada, veria através da janela um povo sofrido se amontoando sobre a capota do carro. Ela gritou famélicos ralhou aleijados encrustando-se no carro babam e bafejam e se humilham até se refestelam sobre o vidro o senhor nem pense em abrir a janela seu motorista pelamor quanto tempo resta até o pedágio ai se arrependimento matasse pelamor queria teletransporte à galeria Lafaiete ou o Printemps pra que fui inventar moda mon dieu pra quê instagram pra quê.

Dois minutos à espera do semáforo sob um viaduto de acesso bastaram para que Rebeca se obrigasse a ver a miséria material que tanto evitara nos caminhos a seus condomínios pelo Brasil.

Depois de cruzar a rodovia dos bandeirantes da Índia, Rebeca teve de encarar outros intestinos da pobreza indiana na entrada da cidade de Agra, onde triunfa o Taj. Eles cospem de cima do tuc-tuc um líquido marrom de tabaco e no lixo fartam-se vacas cães patos macacos acho que nem ser humano falta ao festim desses detritos e eu nem consigo ver ainda o Taj lindo e branco o meu Taj olha que rico que quase o beijo.

Rebeca viu o Taj. Mas Rebeca na fila antes de adentrar o Taj teve um ataque de pânico e não me toquem não me relem os corpos mãos roupas sujas suadas e trêmula fica minha foto e estou trêmula a ponto de pronto não quero mais vou-me já que está pingando e já vim vi e chega.

Rebeca engana hoje em dia todas as amigas que adoram ser logradas, que Rebeca amou sua visita de médico à Índia.

***

A “coroa dos palácios” é um significado possível para Taj Mahal. Mas não o explicita absolutamente, posto que não há tradução que descreva qualquer objeto em sua plenitude; apenas a poesia nos auxilia na recriação das metáforas que reabitam em nós sensações similares às pretendidas pelo artista – sejam tais sinestésicas, quiméricas, inconscientes… Mas isso ainda é pouco. Porque esta espécie de beleza sobrenatural só pode ser interpretada à luz da paixão e dos amores obsessivos, como nos grandes mitos: de Píramo e Tisbe, Inês de Castro e Pedro I, Romeu e Julieta… E do príncipe Shah Jahan e sua terceira esposa Mumtaz Mahal. Após perdê-la no parto do 14o. filho, reza a lenda que ele ficou grisalho do dia para noite e não descansou até erigir a ela este mausoléu celestial. Enfim, é algo por que valha a pena arrepiar-se.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

Mencionei em postagem anterior que os macacos, sagrados no hinduísmo, costumam ser caricatos e folgar com a cara dos viajantes desavisados no subcontinente indiano.
Na saída de um templo hindu no Nepal, por exemplo, o guia orientou-me a não fotografar os animais nem “parecer” levar comida em sacolas, senão haveria alta probabilidade de ser atacado pelos bichos ou ter algum pertence roubado.

O inconveniente é que tal aviso veio justinho na hora de passar sob um pórtico, no qual dezenas de primatas se dependuravam, além de outras dúzias que rodeavam uma ponte, única rota de fuga a cinco metros daquela saída. Eles montavam uma espécie de praça de pedágio. Sem muito exagero, foi revivida a cena final de Os pássaros do Hitchcock, em que as personagens abandonam o refúgio de sua casa, exalando pavor, quando inexplicavelmente as aves cessam o ataque, embora permaneçam ali, tensamente à espreita.

Curti idêntica sensação. Mas felizmente não enfrentei maiores incidentes com a macacada, graças ao bom Shiva.

Agora, houve uma vez uma italiana que, coitada, deveria ter se encomendado a alguma divindade local antes de sair do hotel… (a propósito, numa ocasião um amigo cunhou oportuno provérbio de viajantes sobre esta nacionalidade: “se vir uma mulher requintada num saguão de aeroporto, é bem provável que seja da Itália”.)

Pois bem, esta jovem senhora encarnava um avatar da finesse. Notei sua presença ainda no barco que realiza a travessia de Mumbai para a ilha de Elefanta, pedaço de terra que recebeu tal nome por causa da estátua gigante de um paquiderme ali encontrada, inspiração ao nome de batismo dado pelos lusíadas – sempre eles! – em sua famosa viagem inaugural ao oriente.

A agitação das águas encardidas dessa reentrância por vezes borrifa o interior da embarcação e, por consequência, os passageiros sentados à beirinha, algo que chocou um tanto a bella donna, assim como o ato de um e outro turista atirarem sem cerimônia latinhas de refrigerante naquele braço de mar.

Quarenta minutos depois, com todos desembarcados na ilha, galgamos o monte e chegamos às portas do sítio que é patrimônio cultural da humanidade, as Cavernas de Elefanta. São dois grupos de grutas escavadas: duas dedicadas ao budismo, além de outras cinco covas, consideradas as mais preservadas, que prestam homenagem aos deuses hindus, destacando-se a primeira das cavidades, na qual esculpiram seis metros de Trimurti, uma representação de três cabeças do deus Shiva, as quais significam destruição, criação e proteção.

E proteção era tudo de que precisava nossa companheira de ‘O sole mio.

Após a visita a este grupo de cavernas, um corredor e uma escada a céu aberto levavam às grutas budistas. Portanto todos deviam passar ali – e só por ali – para continuar o passeio.
A italiana caminhava à frente, brava e só, seguida de perto por um grupo de franceses desconfiados – e eu, que me mantinha um pouquinho mais afastado.

Súbito um grupo de macacos cercou a entrada do corredor; um deles, o alfa atrevido, escalou uma mureta e encarou fixamente a viajante solitária, possivelmente adivinhando o conteúdo que ela carregava sob o braço. A mulher congelou. Os franceses recuaram por estratégia. Precavido, me detive até sentir por onde desembocaria a cena.

De fato, o macaco farejara medo na beldade latina e, sem titubear, saltou sobre sua bolsa de grife. O instinto da moça foi o de lutar. E gritar muito.

Antes que os guardas florestais, matando-se de rir da cena em outro canto, interviessem em favor dela, outros cinco macacos do bando partiram para cima da mulher. Horrorizados, os franceses refugiaram-se em exclamações “oh, mon dieu”! Enquanto isso, a valente europeia se recusava a entregar a bolsa e gritava più forte.

Por fim, os dois vigias, cada um portando uma vara, espantaram os animais com gestos e ameaças. Já era tarde, pois a elegantíssima senhora fora humilhada pelos primatas tinhosos e de modos mafiosos; ela reclamava em voz alta “non voglio stare qui, andiamo via, andiamo via!”, desabafo de quem sentiu o desaforo de ser feita gato-sapato pelos bichinhos.

Mesmos depois de largar a bolsa, os macacos prosseguiram na intimidação aos demais circundantes, em sua ronda naquela passagem, como se dissessem: – “próximo”!

Nenhum dos presenciais na cena ousou atravessar o corredor indo-polonês.

Inclusive eu.

Nunca foi prudente testar a profundidade da torrente com os dois pés: principalmente de um rio sagrado.