A transex magrelinha do Camboja: surpresinha na Virada de Abel

A transex magrelinha do Camboja: surpresinha na Virada de Abel

Abel arriscou um corredor da morte em aposta lotérica particular de Ano Novo, transformando-se numa múmia de pó puríssimo comprado nas porosas fronteiras do Acre, a que pretendia exportar a Phuket, empacotado em ataduras minuciosamente aderidas ao corpo como se as substituísse por confortáveis roupas de baixo; quem o tocasse juraria tatear um travesseiro responsa de penas de ganso. Doze quilos da droga, bem distribuídos ao longo das pernas finas, tornearam seus gêmeos geneticamente afilados, deram porte atlético ao tronco e nádegas a uma bunda dantes apelidada de gaveta; o padê transgênico lhe renderia pouco mais de milhão de dólares, limpinhos, com os narcos que conhecera na primeira passagem pela Tailândia quando era reles mochileiro, dá pra viver sussa por uma caralhada de anos com esse plano infalível de aposentaria da vida ilegal, e com a sorte da cidadania cisplatina que herdei da minha velha, inauguro coffee shop em Punta, que viva o guerrilheiro Mujica!, vangloriava-se ainda ao taxista, que nada entendia daquela exaltação, enquanto conduzia-o ao André Franco Montoro airport.

O rapaz engoliu dois lexotans e meio de cinco miligramas antes de enfrentar os controles da Polícia Federal, outra dose cavalar de ansiolítico na área de trânsito do aeroporto de Bangkok, tomava tais precauções sempre e antes de se encontrar com os da barra-pesada, nada mais indicado para ocasiões de forte estresse, a prescrição tornaria a funcionar de modo que as mãos não balançassem o passaporte um milímetro na hora agá, nem tiritasse os chocalhos de prata do punho fino e elegante, tudo de acordo com os conselhos do psiquiatra-amigo que lhe vendia de tempos em tempos o receituário.

Levou um pequeno susto em Bangkok ao ter de encarar a fila do “health control”, no qual um cartaz porcamente escrito à mão listava países tropicais com áreas epidêmicas de febre amarela, incluído ali o Brasil. Temeu que a sorte tal como o fuso tivesse virado vez, mas tudo não passou de mera praxe burocrática: o senhor esteve febril nas últimas quarenta e oito horas? Calafrios, náuseas ou vômito? Não, não e não, só o cansaço de vir do outro lado do mundo mesmo, seu bosta, emendou em sorridente português. Ok, acesso concedido ao paraíso.

Na festa franca da vitória, com a transferência milionária para offshore caribenha confirmada e a megasena da virada no papo, Abel entregou-se a um rega-bofes em Patong Beach com seus comparsas asiáticos, claro que sem nada cheirar – profissional que se preze não comete desses deslizes –, e externou o desejo de passar o réveillon mais tranquilo de sua vida nas imediações do famoso templo de Angkor Wat, moço mimado, talvez pra passar a limpo seus pecadinhos mais recentes. Os colegas de trabalho se entreolharam, loucos que estavam por pregar uma peça no incauto brasileiro, pronto recomendando-lhe a mais bela guia de todo o Camboja do mundo inteiro, worldwide international. A despeito da altíssima procura nessas datas festivas, em menos de dez minutos o secretário do chefão tailandês entrou na web, naipe bafudo que detinha, comprou-lhe passagem executiva, reservou cinco estrelas e uma beldade, cujo nome de guerra era Suri, de certo em homenagem à filha de Tom Cruise.

De fato, Abel se embasbacou com a beleza de Suri, tigresinha de bengala e pele acobreada, olhos delineados idênticos aos de um alto-relevo khmer, enquanto a observava sem que ela ainda o reconhecesse na fila canseira de imigração, segurando uma plaquinha na área receptiva do aeródromo de Siem Reap com a inscrição garrafal BELA, anagrama equivocado, porém auspicioso como as tábuas de salvação.

Durante o dia de visitação, a beldade narrava-lhe as maravilhas do maior complexo religioso do mundo num inglês vagaroso e sensualmente pausado; Abel só se concentrava no movimento de seus lábios de boneca oriental, traçava inaudito estratagema de como abordá-la à noite sem parecer ofensivo, pois não sentira abertura para qualquer gesto mais ousado.

Porém na mesmíssima noite ela surgiu no lobby do hotel vestida de dançarina apsará, como se flutuasse sobre as águas calmas de um lago tropical, ricamente ornada em seda amarela e fúcsia, nada do khmer vermelho, em penduricalhos que lembrariam ouro encrustado por pequeninas jades e maquiagem que lhe conferia ao rosto textura da porcelana mais delicada.

Na hora da virada do bafo do ano, ela bailou nos jardins do hotel pra ele, que já entornara sozinho duas garrafas de tinto chileno, bastante comum aliás no Sudeste Asiático – antes de beberrão, sou a bílis forte dos sertões. Beijou-o na língua branca. Ousado, sem atentar ao bafo ausente de cremes dentais, Abel retribuiu-lhe com um toque na fronteira das partes íntimas. E finalmente teve seu momento de revelação como o Luís Melodia na canção da Magrelinha que idolatrava ouvindo Rádio USP: nem a lua nem o sol adivinhariam o desejo bestial e naturalista, coisa de anos 1880, que era uma lady boy aquela menininha de vestigiozinho de corpo masculino pendurado e durinho. Abel surpreendeu-se por não sentir rejeição ao toque fervido e foi mucho más pero mucho más lejos, desse preconceito que ele não desfaleceria. Ela encabulou-se em breve explicação cristã, (extemporânea atreveria-me): Seus amigos avisaram você, não foi?Minha cirurgia está marcada para o próximo mês em Chiang Mai, linda. Ele não deu bolas, interrompeu-a com um beijaço do mais intenso, enquanto repetia para si “mesmo se ela não ‘o cortasse fora’, continuava sendo minha gatinha agora e pra sempre e amém, até meu rabo pra ela também”.

Encaixando-a ali em seu colo animado, Abel cantarolava num improviso rico e feliz sua falta estranha de originalidade: “no coração, no coração, no coração do Camboja, no coração, onde já mora um brasileiro que não quer nunca mais voltar, de jeito e maneira”.

Rebeca e sua inesquecível visita de médico ao Taj Mahal

Visita de médico ao Taj Mahal

Rebeca planejou visita expressa a Nova Délhi e Agra. Sou avessa a perrengues, nem passa perto da minha lista uma Índia não confio em comida e água e desserviço de quinto mundo.
Porém Rebeca enciumada do passeio da melhor amiga mudou de ideia. Vou de circuito básico, fim de semana nos arredores de Paris, depois compras em Dubai, e por fim um bate-volta pra Índia.

Rebeca não topava com o destino, apenas sonhava o Taj Mahal, quando aos quinze se deliciou numa compilação de contos de As mil e uma noites. Na capa figurava o mausoléu indiano talhado em mármore branco, precisava daquele troféu.

Rebeca antenada sabe que o Taj não se relaciona diretamente à história de Sherazade, pelo simples fato de que o monumento ainda não resplandecia às margens do rio Yamuna quando o clássico da língua árabe já havia amanhecido para as letras.

Rebeca lera tudo sobre o Taj no imaginário e ideal estético e arquitetônico da Pérsia, parte significativa da arte muçulmana que engloba inclusive o mundo árabe. Só não quero sentir cheiro de especiarias suor chá preto e fezes de ratos e outros.

Rebeca pensava horrores da Índia.

Do aeroporto ao hotel no Jaguar exclusivo do transfer, tudo em constelações de no mínimo seis estrelas, uma noite em Nova Délhi, no dia seguinte day trip para Agra, volta direto ao aeroporto, nenhum minuto mais no subdesenvolvimento.

O que a gente não faz só pra ticar um país no mapa, esse aeroporto dá um banho no de Guarulhos e esse povo esquisito que nem sabe o que é banho, que cheiros embriagam meu nariz, menos mal que fico quase nada neste pardieiro, tomara que não chova porque assim minhas fotos hão de brilhar no instagram, ai calor amazônico que não me abandona nem em viagem de férias liga o ar condicionado no máximo please eu só mereço o máximo daí faço check-in expresso pois tudo está expresso nessa viagem, desmaiei na king size e despertei de rosto afogueado com o sol sobre uma cidade verde, esse sonho de Nova Délhi nem parece capital da Índia de tão limpinha nem parece a África essa cidade britânica com parques britânicos emaranhados por ruas em direção inglesa, comecei a me trair e até a gostar cadê o Jaguar que dentro em três horas estarei em Agra finalmente estrada boa de interior paulista isso que a amiga me garantiu, passa antes embaixada brasileira aqui, representação americana ali esses diplomatas funcionários públicos sórdidos que passam muito bem a vida com dinheiro dos meus impostos.

Rebeca só não contava que antes de cair na pedagiada, veria através da janela um povo sofrido se amontoando sobre a capota do carro. Ela gritou famélicos ralhou aleijados encrustando-se no carro babam e bafejam e se humilham até se refestelam sobre o vidro o senhor nem pense em abrir a janela seu motorista pelamor quanto tempo resta até o pedágio ai se arrependimento matasse pelamor queria teletransporte à galeria Lafaiete ou o Printemps pra que fui inventar moda mon dieu pra quê instagram pra quê.

Dois minutos à espera do semáforo sob um viaduto de acesso bastaram para que Rebeca se obrigasse a ver a miséria material que tanto evitara nos caminhos a seus condomínios pelo Brasil.

Depois de cruzar a rodovia dos bandeirantes da Índia, Rebeca teve de encarar outros intestinos da pobreza indiana na entrada da cidade de Agra, onde triunfa o Taj. Eles cospem de cima do tuc-tuc um líquido marrom de tabaco e no lixo fartam-se vacas cães patos macacos acho que nem ser humano falta ao festim desses detritos e eu nem consigo ver ainda o Taj lindo e branco o meu Taj olha que rico que quase o beijo.

Rebeca viu o Taj. Mas Rebeca na fila antes de adentrar o Taj teve um ataque de pânico e não me toquem não me relem os corpos mãos roupas sujas suadas e trêmula fica minha foto e estou trêmula a ponto de pronto não quero mais vou-me já que está pingando e já vim vi e chega.

Rebeca engana hoje em dia todas as amigas que adoram ser logradas, que Rebeca amou sua visita de médico à Índia.

***

A “coroa dos palácios” é um significado possível para Taj Mahal. Mas não o explicita absolutamente, posto que não há tradução que descreva qualquer objeto em sua plenitude; apenas a poesia nos auxilia na recriação das metáforas que reabitam em nós sensações similares às pretendidas pelo artista – sejam tais sinestésicas, quiméricas, inconscientes… Mas isso ainda é pouco. Porque esta espécie de beleza sobrenatural só pode ser interpretada à luz da paixão e dos amores obsessivos, como nos grandes mitos: de Píramo e Tisbe, Inês de Castro e Pedro I, Romeu e Julieta… E do príncipe Shah Jahan e sua terceira esposa Mumtaz Mahal. Após perdê-la no parto do 14o. filho, reza a lenda que ele ficou grisalho do dia para noite e não descansou até erigir a ela este mausoléu celestial. Enfim, é algo por que valha a pena arrepiar-se.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

Mencionei em postagem anterior que os macacos, sagrados no hinduísmo, costumam ser caricatos e folgar com a cara dos viajantes desavisados no subcontinente indiano.
Na saída de um templo hindu no Nepal, por exemplo, o guia orientou-me a não fotografar os animais nem “parecer” levar comida em sacolas, senão haveria alta probabilidade de ser atacado pelos bichos ou ter algum pertence roubado.

O inconveniente é que tal aviso veio justinho na hora de passar sob um pórtico, no qual dezenas de primatas se dependuravam, além de outras dúzias que rodeavam uma ponte, única rota de fuga a cinco metros daquela saída. Eles montavam uma espécie de praça de pedágio. Sem muito exagero, foi revivida a cena final de Os pássaros do Hitchcock, em que as personagens abandonam o refúgio de sua casa, exalando pavor, quando inexplicavelmente as aves cessam o ataque, embora permaneçam ali, tensamente à espreita.

Curti idêntica sensação. Mas felizmente não enfrentei maiores incidentes com a macacada, graças ao bom Shiva.

Agora, houve uma vez uma italiana que, coitada, deveria ter se encomendado a alguma divindade local antes de sair do hotel… (a propósito, numa ocasião um amigo cunhou oportuno provérbio de viajantes sobre esta nacionalidade: “se vir uma mulher requintada num saguão de aeroporto, é bem provável que seja da Itália”.)

Pois bem, esta jovem senhora encarnava um avatar da finesse. Notei sua presença ainda no barco que realiza a travessia de Mumbai para a ilha de Elefanta, pedaço de terra que recebeu tal nome por causa da estátua gigante de um paquiderme ali encontrada, inspiração ao nome de batismo dado pelos lusíadas – sempre eles! – em sua famosa viagem inaugural ao oriente.

A agitação das águas encardidas dessa reentrância por vezes borrifa o interior da embarcação e, por consequência, os passageiros sentados à beirinha, algo que chocou um tanto a bella donna, assim como o ato de um e outro turista atirarem sem cerimônia latinhas de refrigerante naquele braço de mar.

Quarenta minutos depois, com todos desembarcados na ilha, galgamos o monte e chegamos às portas do sítio que é patrimônio cultural da humanidade, as Cavernas de Elefanta. São dois grupos de grutas escavadas: duas dedicadas ao budismo, além de outras cinco covas, consideradas as mais preservadas, que prestam homenagem aos deuses hindus, destacando-se a primeira das cavidades, na qual esculpiram seis metros de Trimurti, uma representação de três cabeças do deus Shiva, as quais significam destruição, criação e proteção.

E proteção era tudo de que precisava nossa companheira de ‘O sole mio.

Após a visita a este grupo de cavernas, um corredor e uma escada a céu aberto levavam às grutas budistas. Portanto todos deviam passar ali – e só por ali – para continuar o passeio.
A italiana caminhava à frente, brava e só, seguida de perto por um grupo de franceses desconfiados – e eu, que me mantinha um pouquinho mais afastado.

Súbito um grupo de macacos cercou a entrada do corredor; um deles, o alfa atrevido, escalou uma mureta e encarou fixamente a viajante solitária, possivelmente adivinhando o conteúdo que ela carregava sob o braço. A mulher congelou. Os franceses recuaram por estratégia. Precavido, me detive até sentir por onde desembocaria a cena.

De fato, o macaco farejara medo na beldade latina e, sem titubear, saltou sobre sua bolsa de grife. O instinto da moça foi o de lutar. E gritar muito.

Antes que os guardas florestais, matando-se de rir da cena em outro canto, interviessem em favor dela, outros cinco macacos do bando partiram para cima da mulher. Horrorizados, os franceses refugiaram-se em exclamações “oh, mon dieu”! Enquanto isso, a valente europeia se recusava a entregar a bolsa e gritava più forte.

Por fim, os dois vigias, cada um portando uma vara, espantaram os animais com gestos e ameaças. Já era tarde, pois a elegantíssima senhora fora humilhada pelos primatas tinhosos e de modos mafiosos; ela reclamava em voz alta “non voglio stare qui, andiamo via, andiamo via!”, desabafo de quem sentiu o desaforo de ser feita gato-sapato pelos bichinhos.

Mesmos depois de largar a bolsa, os macacos prosseguiram na intimidação aos demais circundantes, em sua ronda naquela passagem, como se dissessem: – “próximo”!

Nenhum dos presenciais na cena ousou atravessar o corredor indo-polonês.

Inclusive eu.

Nunca foi prudente testar a profundidade da torrente com os dois pés: principalmente de um rio sagrado.

Uma passagem pela Índia: brevíssima busca do português perdido

Uma passagem pela Índia: brevíssima busca do português perdido

Extravagante. Desigual e opulenta. Miserável. Monumental, bela e suja.
Talvez porque qualquer adjetivo caiba nos juízos que os visitantes emitam sobre um passeio às Índias, por isso mesmo o subcontinente seja inesquecível – para o bem e para o mal.

Existe claro o inigualável Taj Mahal, manjada obra dos persas, que muita gente ainda não intuiu se tratar de uma joia da cultura muçulmana. Há a lã da Caxemira, região que se gaba de ser a mais bela do mundo. E cristãos aos borbotões à margem do Ganges. Além de um Gandhi que deploraria a Bomba. E esta Mumbai que entristece nossa vista com tanta riqueza e miséria, depois de esnobar nosso idioma e coroar-se ex-miss-Bombaim. Até a língua inglesa ganhou um novo significado por causa dos povos hindus….

No país que é mais populoso que todas as Américas unidas.

Cruzei desde pessoas que visitavam o país, pagando pra ver o Taj Mahal apenas num fim de semana, até estrangeiros que começaram no velho e bom sabático de três meses, os quais acabaram se tornando uma vida inteira.

Ninguém lhe é indiferente, ó Índia.

Em nossa cultura ibero-americana aprendemos a amar desde cedo o caminho das Índias nas cartilhas das grandes navegações, e depois nos aprofundarmos no gosto por esta porção de oriente exótico, em escrita viajante de Camões sobre os feitos de Vasco da Gama e os seus, no contorno ao Cabo das Tormentas: da emboscada em Mombaça à conquista do território de Goa e Bombaim.

Alexandre Magno, cerca de um milênio antes, cruzou desertos e cordilheiras para combater batalhões de elefantes e dominar mesmo que por curto tempo alguns reinos do Hindustão; porém sua língua helênica não impregnou nenhuma porção do vale gangético, diferente da cultura lusitana, que colonizou a região de Goa até 1963 e marca presença até hoje, seja na comida, arquitetura ou toponímia.

Com tamanho panorama saudosista, era clara expectativa ouvir o português melífluo.

Infelizmente tal momento não existiu, que depois de guardar para o último dia de visita o encontro com o cozinheiro do hotel que era fluente em nosso idioma, descobri que ele não poderia comparecer, que o senhor Menezes tinha morrido naquele mesmo dia, como havia de ser.

***

Exuberante terra de Goa, paisagem de verdura boa em relva de matiz infinito, igreja franciscana refrescada nas cansadas monções, alimento temperado a vindalho e especiarias das Índias deste vale, ai de que vale essa vida tão nossa e portuguesa sem essa certeza tropical: morremos inundando matas com um sangue que já nasce frio, e de tal nascente só mais rio, que de nada o serve o chorar, pois no fundo ainda eu-rio num próximo avatar, serei outro peixe fisgado pra sempre deste arábico doce mar. Qu’ inda é doce morrer no mar, Dorival, nas ondas verdes de um novo lar.

Notas breves sobre o Nepal

Notas breves sobre o Nepal

Se quiser ir a Mustang, separe uma semana a mais e alguns dólares: para visitar a região que dava nome a um cigarro da infância, os estrangeiros devem pagar uma taxa aos locais de 50 dólares diários (e um mínimo de 500) para adentrar o mítico reino.

Se resolver visitar o vizinho Butão, separe entre 200 e 250 dólares por dia (varia de acordo com o mês). Sim, o governo daquele país exige esse gasto mínimo diário, no intuito de atrair os mais endinheirados.

Se preferir uma caminhada até o acampamento na base do Everest, separe no mínimo seis dias para subir e outros quatro para descer os cinco mil metros.

Se a energia de Buda atrair você para o local de seu nascimento, Lumbini, reserve ao menos três jornadas.

Leve um remédio para desarranjos intestinais.

Ou compre o remédio na farmácia local.

Evite julho ou agosto, que é abafado e chove muito.

Ou vá em julho ou agosto porque sai mais barato.

Vá a Pokhara de avião: são oito horas de estrada.

Ou alugue carro e motorista e vá de carro até Pokhara, apreciando a paisagem local.

Relaxe num templo.

Dê boas gorjetas, leve camisetas do Brasil, doe-as com outras roupas. Desapegue mesmo. O olhar de contentamento não tem preço.

Nepal Pictures apresenta: O pequeno Buda e o planeta dos macacos

Bernardo Bertolucci é sócio do clube de cineastas iluminados que, após sua morte terrena, vão habitar os Campos Elísios por não terem legado ao mundo um único filme ruim. Sua trilogia oriental, formada por três grandes obras, triunfou junto às plateias e crítica mundiais no final do século XX: O último imperador (The last emperor, 1987), O céu que nos protege (The sheltering sky, 1990) e O pequeno Buda (Little Buddha, 1993).

Este último, delicado relato sobre a vida de Siddhārtha Gautama, nascido em Lumbini no Nepal, mais tarde chamado Shakyamuni ou simplesmente Buddha, teve muitas de suas locações nos arredores de Catmandu. No quintal do hotel onde fiquei, por exemplo, o Gokarna Forest Resort, há uma árvore sagrada tanto para budistas quanto para hindus, a poderosa Ficus elastica morácea, sob a qual o personagem de Keanu Reeves fez suas principais cenas de meditação.

Essa hospedaria fica a apenas cinco quilômetros do aeroporto de Catmandu, na entrada da floresta Gokarna, um oásis próximo à região metropolitana onde vivem mais de dois milhões de pessoas. Ali dá para entender de onde vêm estas visões do paraíso e fantasias do shangri-la hollywoodiano a respeito do Nepal, mesmo que a uma pequena distância da reserva natural fique uma capital poluída, de trânsito caótico e sem saneamento básico, enfim, inspiração para a mesma ladainha que pode ser desfiada sobre outras metrópoles pobres do mundo.

De volta ao bucolismo de Gokarna. Após dar entrada nessa espécie de hotel-fazenda, chamou-me a atenção um aviso: cuidado com os macacos. Havia uma placa em toda santa janela dos quartos para nunca deixá-las abertas ao sair do apartamento, senão eles podiam invadir para roubar comida. Como estes animais são sagrados, acabam mandando no pedaço. No hinduísmo, além das vacas, outros bichos também recebem tratamento VIP, principalmente as fêmeas (aliás, achei superpositivo não haver cães e outros animais vítimas de atropelamento nas estradas que percorri no subcontinente indiano, diferente de outro lugar memorável que visitei recentemente, o Egito, onde me comoveu o tanto de cachorros mortos na beira das rodovias).

Depois do check-in, explorar a natureza ao redor foi uma boa pedida. Ao lado da árvore que foi personagem do filme, há um caminho que leva à floresta, a qual pode ser visitada com o auxílio de um guia local. Mais placas pedem precaução com os bichos selvagens. Eis que me aparece uma enorme borboleta azul, como uma joia esculpida de lápis-lazúli, ora pingente sobre um cipó, ora bailando no ar frágil como uma bolha de sabão. A sinfonia dos pássaros também estabelece um diapasão de paz no espírito, nesta espécie de santuário em que ornitólogos já identificaram mais de 50 tipos diferentes de aves.

Após curtir a floresta, relaxar no spa mostra-se outra excelente opção. Uma hora e quinze minutos de massagem ayurvédica sai por menos de 80 reais (em São Paulo, custa pelo menos o triplo deste valor). Incrível combinação de preço e qualidade. E assim que o estômago despertar, o restaurante de especialidades nepalesas e internacionais do próprio resort não desapontará os paladares mais exigentes.

Enfim, em um único dia brinca-se de dolce vita, vive-se uma experiência cinematográfica em algum set sincrético onde convivem budismo, hinduístas e observadores de pássaros, neste planeta à parte de primatas sagrados.

***

Adendo cinematográfico: o filme mais prestigiado da trilogia, O último imperador, ganhou uma baciada de Oscars e foi a última vitória da Columbia Pictures, hoje Sony Pictures, na categoria de melhor filme. O estúdio de Culver City detém o recorde de 12 estatuetas da academia na categoria principal. Estatística de respeito.

A moça de Bangladesh e o cavalheiro sueco: de noite no Nepal

A moça de Bangladesh e um cavalheiro sueco: de noite no Nepal

Em julho e agosto chove a cântaros no sul da Ásia. Há proveito em se viajar nesta época pelos preços de baixa temporada, embora seja visto como algo desvantajoso para quem não tolera a umidade e o calor de uma sauna. Desde garoto aclimatado ao sertão paulista, o bafo quente e tropical não me amola mais – mesmo quando mal saímos do banho, já estamos suando em bica.

Em Catmandu, o deus das monções mostrou seu poder na matinê de um domingo abafado no mês da canícula. O céu desmoronou por volta das 18h. Como todo ano uma região do subcontinente é premiada com enchentes torrenciais, estava com toda pinta de ser a hora e vez do Nepal. A tempestade declarou trégua por volta das 21h, quando passou ao chuvisco ininterrupto. Frequentes na região, os cortes de energia se intercalavam com os relâmpagos cada vez mais distantes.

Peguei um táxi em frente ao hotel, estava na hora de mergulhar na noite local molhada. Poucas vias dispõem de iluminação pública e asfalto, mesmo na região mais central da cidade. Durante o percurso a cidade se tingiu de breu, escura e brilhando, pois os faróis dos carros viravam luas dentro das poças d’água. Depois de várias vacas preguiçosas perambulando pelo caminho, aportei no bairro internacional da cidade, o Thamel. Levava anotados nomes de vários bares e restaurantes da região, todos recomendados, embora não houvesse exatamente um endereço e numeração a serem seguidos – havia apenas apontamentos do tipo “bar x”, perto do “hotel y”. Forte, né?

A comunicação com o chofer beirava a precariedade, e depois de meia hora perdidos, me achei numa placa, dentre dezenas de caóticos luminosos, que tinha o nome de um bar local de coquetéis, o Maya Pub. Infelizmente estava às moscas. Insisti em outros três lugares diferentes, dando com todas as portas fechadas. Era hora de descer do carro e arriscar um desfecho a pé.

Entre meios-fios inundados e a rua enlameada, caminhei atraído pela música que vibrava naquela atmosfera mole e gelatinosa. De fato era um show ao vivo no pub de bandeira e cerveja irlandesas, o Paddy Foley’s. “Vai ter que ser esse aqui, o resto é puro silêncio.” A banda de locais intercalava Nirvana, Sex Pistols, além de suas próprias composições em inglês. Bacaníssimas. Havia também uns seis clientes numa mesa à esquerda da que me reservaram, os quais me pareceram ser do subcontinente indiano (composto também pelos outros países da região – Índia, Paquistão, Bangladesh e Butão). Na mesa oposta, um norte-americano puxou papo e desembestou a falar espanhol depois de saber que eu era brasileiro. Viva a diversidade.

No mesmo instante adentrou um casal que polarizaria as atenções dali por diante. Uma moça esguia, moreníssima e magra sorria animada ao lado de um homem branco robusto que, se não fosse careca, certamente seria loiro. Ambos se portavam de forma altiva, embora ela tentasse dissimular algum receio armado atrás do olhar, um sentimento em zona de conflito entre a melancolia e a alegria. O sueco parecia um sujeito da realeza, retratado nalguma capa de revista europeia de fofoca, trazido à vida naquele bar e só para ela. Tocavam-se como quem se ama há muito tempo. Pediram gim tônica e Kir Royal. O gim pra ela. Tudo em conformidade, até que a mesa vizinha começou a debochar do casal, e mais que chacota, havia de fato hostilidade no ar.

Nesses momentos, prefiro ação à reflexão: prontamente convidei o casal ofendido à minha companhia, depois de farejar algum preconceito em relação ao duo. A princípio me pareceram desconfiados, mas logo se dispuseram a migrar de mesa. Minha intuição fez sentido. Em menos de 15 minutos a mesa hostil partiu, visivelmente incomodada com a alegria da moça bengali, do sueco calvo e do brasileiro à procura de amigos. Soube de várias coisas a respeito deles, de como se conheceram pela web etc, pois ficamos no pub até o fim.

Fizemos amizade com o vocalista da banda, que ficou indignado com a atitude coletiva da mesa. Tentou pedir desculpas, começando por “nem todos os nepaleses são assim…”. Que bobagem, interrompeu o sueco, que na terra dele havia idiotas da mesma estirpe, mas felizmente não eram a maioria, como não deveriam ser ali. Em retribuição, o vocalista cantou-lhes em homenagem “Come as you are”.

Nepal: para além do mito de Shangri-la

Viajamos, também, porque precisamos constatar que nos equivocamos sobre muitos aspectos da vida, principalmente os que nos são dados a ver apenas pela ficção, que depois são reforçados pelo narcisismo nosso de cada dia.

Antes de visitar o Nepal, nutria uma expectativa fantasiosa sobre o que encontrar no país que escala o teto do mundo. Imaginava um Shangri-la budista nas faldas da caixa d’água da Ásia, o Himalaia, certamente por influência do clássico americano Horizonte Perdido (Lost Horizon, 1937) de Frank Capra, com que tantas vezes sonhei nas sessões de filmes em madrugadas dos anos 1980.

Felizmente encontramos algo mais saboroso que o doce estereótipo cinematográfico: constituído pelas mais diversas nuances, o Vale de Catmandu encanta, decepciona e assombra o visitante que não supunha tamanha diversidade cultural.

Há sete aglomerados de construções e monumentos que dão à região do vale o pomposo título de patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO, edifícios que registram a rica herança de uma das poucas regiões do mundo que nunca foram colonizadas por europeus. Seus feitos históricos e artísticos nos foram legados por meio das praças Durbar de Catmandu, Patan e Bhaktapur, as estupas budistas de Swayambhu e Bauddhanath, além das joias hindus: os templo de Changu Narayan e Pashupatinah.

Às margens do sagrado rio Bagmati fica o Templo de Pashupatinah, dedicado ao deus Shiva. Ali acontecem os funerais, nos quais os falecidos recebem sua última homenagem: primeiro molham seus pés e cabeça nas águas sagradas, para depois incinerá-los na pira funerária, ao lado das demais cremações. Horas depois, os ossos ainda resistentes ao fogo são triturados e, juntamente com as cinzas, misturados e arremessados às águas, desemboque final de todos.

Voo da montanha, Cordilheira do Himalaia, Monte Everest. 20 de agosto de 2013.

Tunner: Provavelmente somos os primeiros turistas que eles recebem desde a guerra.
Kit Moresby: Tunner, não somos turistas, somos viajantes.
Tunner: Ah, e qual a diferença?
Port Moresby: Um turista é aquele que pensa em voltar pra casa logo na chegada, Tunner.
Kit Moresby: Ao passo que um viajante talvez nunca mais volte.
Tunner: Você quer dizer que eu sou um turista.
Kit Moresby: Sim, Tunner. E eu sou meio a meio.

Diálogo do filme O Céu Que Nos Protege (The Sheltering Sky, 1990), dirigido por Bernardo Bertulucci, que inspirou a criação deste relato.

Evoé, amigos. Após tantos e bons conselhos, iniciei a escritura do Tour do Alex, uma forma de registrar as experiências de um viajante que busca decifrar o mundo sempre como se fosse a primeira descoberta.

Brinquei muito menino com os atlas, em reinos distantes, montanhas geladas, o Monte Everest. Sei que seus 8.848 metros nunca vou escalar. Mas um velho sonho de Ícaro e cartógrafo diletante se cumpriu em 20 agosto de 2013, em sobrevoo calmo sobre nuvens de monções, rompidas por ele, o verdadeiro Olimpo, o maioral de pálida névoa dos Himalaias.