Diálogo entre putas na Plaza de Chueca, Madrid!

– Hilda Fura-olho do cão!
– Grita baixo, ô Antonieta da Peste.
– Banquei tua passagem, ex-pão-com-ovo Zona Leste!
– Não me incorpora a brasuca barulhenta, senão…
– Ou então o-que-o-que, ladra de macho alheio!
– Te denuncio pros polícia da praça, vagaba sem-papéis.
– Traíra das amiga por passaporte e cama c’o véio!
– Se for pra ser cínica, “vão-se os dedos, fic’os anéis”.
– Mas antes abr’outra boceta nessa cara lavada à peroba!
– Aqui não tem lei da peixeira, tercermundista covarde.
– Poder de vingança é mais antigo, pérfida duma ova!
– Deixo paga a cuba libre, amostra da minha bondade.
– Hilda, num levanta ainda, perra bandida!
– Tieta, volta pra internet d’agreste vida.
– !
– .

As pegadoras de Luxor

Ou as turistas do amor no Egito

Jorge estava odiando Luiza à hora do jantar naquela ribeira coaxante do Nilo, a um pulinho do centro de Luxor. Principiou-se a sinfonia de minaretes e grilos, cacofonia e fuga para sua entrega à melancolia, que um vago arrependimento lhe abatera pela primeira vez ali à luz de velas vermelhas assombradas por mosquitos com sua esposa inda acesa. Cedi a um casamento morno pela promessa de salvação com a mulher boa sincera farta de bossa que ora me afastou de nefastos caminhos, isso podia ter destruído minha reputação de jurista antes mesmo de ser aprovado em exame público, era tão linda minha egiptóloga professora da USP no princípio do afeto quando me livrou de becos e recaídas na retorta noite de São Paulo é ela que age agora de modos tão-não-sei por-que-tais ela passou os dois últimos dias afoita em nossa primeira viagem longa e eu não posso nem quero sentir-me um bichinho ingrato enquanto ela for minha for minha guia de primeira classe fez-que-fez para visitarmos os templos todos num raio de cento e cinqüenta quilômetros a partir deste lugar, sinto culpa por não partilhar de seu fogo por Ramsés II e a rainha da paz Hatshepsut, custa-me prestar-lhe atenção quando interpreta os hieróglifos dos muros incandescentes amarelos, de seus olhos semicerrados pela luz do deserto, das minhas mãos desidratadas em calor argiloso de agosto, ai como arde o desamor em flor, não sei bem se está clara a culpa o desinteresse e essa ausência da palavra cortês, qual me denunciei na véspera da boda no tumulto de um sonho cruel no qual eu fugia de seu farto colo nalguma hora agá gritando-lhe com indiferença que não a desejava mais feito tantos homens que se queixam no pós-coito da mulher outrora amada.

Por sua vez, Luiza fingiu não captar o tédio nu-outro e discorreu com força do entusiasmo sobre o passeio em balão tapete mágico no qual o casal surfaria as primevas horas que abrem alas à dedirrósea aurora seguinte daí ele deu de ombros que não repousaria direito por causa do passeio em balão na madrugada que em breve rebentaria enfim ele clamou do tempero da comida, que injusto ela logo defendeu suas escolhas que era este o melhor restaurante da gastronomia local fruto do casamento feliz de um mestre-cuca egípcio cansado do caos do Cairo e sua chef irlandesa apaixonada pelos da margem direita do rio-dádiva, assim deu que ele arrebatou do ar o ataque sutil da fêmea ofendida e pediu a conta sem sobremesa café ou chá açucarado de hortelã em demasia. Caminharam até o jardim do hotel flanqueando a barranca do Nilo como em filme mudo estrelado por múmias. Ela finalmente chiou do calor e ascendeu ao quarto tendo por álibi o ar condicionado e a precisão de descansar para a vindoura aventura nos ares, enquanto ele só carecia de outra dose cavalar de tônica-e-gim praguentar a noite insone que teria pela frente por fim.

No entanto este Jorge confuso não esquadrinhava o bar à procura de mais mulher simplesmente, buscava outra companhia para esquecer a dúvida acesa de um vaga-lume à deriva num ilhéu de separação, se ela dorme e desperta automática como médico plantonista, para mim, virar noite é preferível a madrugar às quatro em ponto da matina, depois aqui na barra do bar o papo com Mahmoud brilha sempre no vozerio das alegrias, estudo árabe com eles hoje decorei ámar arbatashar, lua quatorze, formoso jeito de encantar a menina pois que ela emprestou a lindeza do plenilúnio em décimo quarto dia do islâmico mês.

Naquele instante avizinhou-se de Jorge uma senhorita Anne, mais adorável pela simpatia que pelo padrão-beleza ocidental, atarracada que podia ser considerada outra espécie de lua cheia: escocesa de frugal cabeleira ruiva em rostinho redondo de pele vermelha e risonha, apresentadora de TV em Glasgow, excitando mais e mais sua verve a cada gole de um álcool forte e assim me narrou sua paixão por Ahmed rapagão robusto que ela visitava por oitava vez naquele ano por sorte voava-se direto do Reino Unido ao Reino dos Faraós durante plena revolução dos jasmins sem cruzar pela Praça Tahrir e com ele ela forjava planos de habitar perto do Vale dos Reis compraria um dois-quartos em frente ao rio-deus pela bagatela de trinta mil libras logo em seguida chegou sua amiga Cristina alemã loura septuagenária, também pegadora de egípcios, porém sem nada muito romantizar.

Mudaram-se à mesa de Cristina que entornava espumante e a cada taça virada ficava ainda mais estrábica e disparava sobre a mesa seu mantra copta tonight-I-will-fuck-fuck-fuck batendo uma mão contra a outra em gesto vulgar de cópula, de forma que Jorge em seu íntimo se escandalizou bem.

O namorado de Anne baixou no bar e carregou-a pra dançar.

Momento sublime de Jorge e Cristina a sós.

A septuagenária pediu encarecidamente que Jorge abandonasse a mesa antes da chegada do paquera trintão: Ahmed é bofe ciumento, deus-nos-livre se vir você pelejando em cima de mim, não queima meu filme, seu moço, volta pra barra fingindo que nunca mais me viu.

Jorge comprou um charuto e foi espantar sua caretice com os pernilongos do jardim.

Rebeca e sua inesquecível visita de médico ao Taj Mahal

Visita de médico ao Taj Mahal

Rebeca planejou visita expressa a Nova Délhi e Agra. Sou avessa a perrengues, nem passa perto da minha lista uma Índia não confio em comida e água e desserviço de quinto mundo.
Porém Rebeca enciumada do passeio da melhor amiga mudou de ideia. Vou de circuito básico, fim de semana nos arredores de Paris, depois compras em Dubai, e por fim um bate-volta pra Índia.

Rebeca não topava com o destino, apenas sonhava o Taj Mahal, quando aos quinze se deliciou numa compilação de contos de As mil e uma noites. Na capa figurava o mausoléu indiano talhado em mármore branco, precisava daquele troféu.

Rebeca antenada sabe que o Taj não se relaciona diretamente à história de Sherazade, pelo simples fato de que o monumento ainda não resplandecia às margens do rio Yamuna quando o clássico da língua árabe já havia amanhecido para as letras.

Rebeca lera tudo sobre o Taj no imaginário e ideal estético e arquitetônico da Pérsia, parte significativa da arte muçulmana que engloba inclusive o mundo árabe. Só não quero sentir cheiro de especiarias suor chá preto e fezes de ratos e outros.

Rebeca pensava horrores da Índia.

Do aeroporto ao hotel no Jaguar exclusivo do transfer, tudo em constelações de no mínimo seis estrelas, uma noite em Nova Délhi, no dia seguinte day trip para Agra, volta direto ao aeroporto, nenhum minuto mais no subdesenvolvimento.

O que a gente não faz só pra ticar um país no mapa, esse aeroporto dá um banho no de Guarulhos e esse povo esquisito que nem sabe o que é banho, que cheiros embriagam meu nariz, menos mal que fico quase nada neste pardieiro, tomara que não chova porque assim minhas fotos hão de brilhar no instagram, ai calor amazônico que não me abandona nem em viagem de férias liga o ar condicionado no máximo please eu só mereço o máximo daí faço check-in expresso pois tudo está expresso nessa viagem, desmaiei na king size e despertei de rosto afogueado com o sol sobre uma cidade verde, esse sonho de Nova Délhi nem parece capital da Índia de tão limpinha nem parece a África essa cidade britânica com parques britânicos emaranhados por ruas em direção inglesa, comecei a me trair e até a gostar cadê o Jaguar que dentro em três horas estarei em Agra finalmente estrada boa de interior paulista isso que a amiga me garantiu, passa antes embaixada brasileira aqui, representação americana ali esses diplomatas funcionários públicos sórdidos que passam muito bem a vida com dinheiro dos meus impostos.

Rebeca só não contava que antes de cair na pedagiada, veria através da janela um povo sofrido se amontoando sobre a capota do carro. Ela gritou famélicos ralhou aleijados encrustando-se no carro babam e bafejam e se humilham até se refestelam sobre o vidro o senhor nem pense em abrir a janela seu motorista pelamor quanto tempo resta até o pedágio ai se arrependimento matasse pelamor queria teletransporte à galeria Lafaiete ou o Printemps pra que fui inventar moda mon dieu pra quê instagram pra quê.

Dois minutos à espera do semáforo sob um viaduto de acesso bastaram para que Rebeca se obrigasse a ver a miséria material que tanto evitara nos caminhos a seus condomínios pelo Brasil.

Depois de cruzar a rodovia dos bandeirantes da Índia, Rebeca teve de encarar outros intestinos da pobreza indiana na entrada da cidade de Agra, onde triunfa o Taj. Eles cospem de cima do tuc-tuc um líquido marrom de tabaco e no lixo fartam-se vacas cães patos macacos acho que nem ser humano falta ao festim desses detritos e eu nem consigo ver ainda o Taj lindo e branco o meu Taj olha que rico que quase o beijo.

Rebeca viu o Taj. Mas Rebeca na fila antes de adentrar o Taj teve um ataque de pânico e não me toquem não me relem os corpos mãos roupas sujas suadas e trêmula fica minha foto e estou trêmula a ponto de pronto não quero mais vou-me já que está pingando e já vim vi e chega.

Rebeca engana hoje em dia todas as amigas que adoram ser logradas, que Rebeca amou sua visita de médico à Índia.

***

A “coroa dos palácios” é um significado possível para Taj Mahal. Mas não o explicita absolutamente, posto que não há tradução que descreva qualquer objeto em sua plenitude; apenas a poesia nos auxilia na recriação das metáforas que reabitam em nós sensações similares às pretendidas pelo artista – sejam tais sinestésicas, quiméricas, inconscientes… Mas isso ainda é pouco. Porque esta espécie de beleza sobrenatural só pode ser interpretada à luz da paixão e dos amores obsessivos, como nos grandes mitos: de Píramo e Tisbe, Inês de Castro e Pedro I, Romeu e Julieta… E do príncipe Shah Jahan e sua terceira esposa Mumtaz Mahal. Após perdê-la no parto do 14o. filho, reza a lenda que ele ficou grisalho do dia para noite e não descansou até erigir a ela este mausoléu celestial. Enfim, é algo por que valha a pena arrepiar-se.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

A italiana chique versus a gangue de macacos da Ilha de Elefanta, Índia.

Mencionei em postagem anterior que os macacos, sagrados no hinduísmo, costumam ser caricatos e folgar com a cara dos viajantes desavisados no subcontinente indiano.
Na saída de um templo hindu no Nepal, por exemplo, o guia orientou-me a não fotografar os animais nem “parecer” levar comida em sacolas, senão haveria alta probabilidade de ser atacado pelos bichos ou ter algum pertence roubado.

O inconveniente é que tal aviso veio justinho na hora de passar sob um pórtico, no qual dezenas de primatas se dependuravam, além de outras dúzias que rodeavam uma ponte, única rota de fuga a cinco metros daquela saída. Eles montavam uma espécie de praça de pedágio. Sem muito exagero, foi revivida a cena final de Os pássaros do Hitchcock, em que as personagens abandonam o refúgio de sua casa, exalando pavor, quando inexplicavelmente as aves cessam o ataque, embora permaneçam ali, tensamente à espreita.

Curti idêntica sensação. Mas felizmente não enfrentei maiores incidentes com a macacada, graças ao bom Shiva.

Agora, houve uma vez uma italiana que, coitada, deveria ter se encomendado a alguma divindade local antes de sair do hotel… (a propósito, numa ocasião um amigo cunhou oportuno provérbio de viajantes sobre esta nacionalidade: “se vir uma mulher requintada num saguão de aeroporto, é bem provável que seja da Itália”.)

Pois bem, esta jovem senhora encarnava um avatar da finesse. Notei sua presença ainda no barco que realiza a travessia de Mumbai para a ilha de Elefanta, pedaço de terra que recebeu tal nome por causa da estátua gigante de um paquiderme ali encontrada, inspiração ao nome de batismo dado pelos lusíadas – sempre eles! – em sua famosa viagem inaugural ao oriente.

A agitação das águas encardidas dessa reentrância por vezes borrifa o interior da embarcação e, por consequência, os passageiros sentados à beirinha, algo que chocou um tanto a bella donna, assim como o ato de um e outro turista atirarem sem cerimônia latinhas de refrigerante naquele braço de mar.

Quarenta minutos depois, com todos desembarcados na ilha, galgamos o monte e chegamos às portas do sítio que é patrimônio cultural da humanidade, as Cavernas de Elefanta. São dois grupos de grutas escavadas: duas dedicadas ao budismo, além de outras cinco covas, consideradas as mais preservadas, que prestam homenagem aos deuses hindus, destacando-se a primeira das cavidades, na qual esculpiram seis metros de Trimurti, uma representação de três cabeças do deus Shiva, as quais significam destruição, criação e proteção.

E proteção era tudo de que precisava nossa companheira de ‘O sole mio.

Após a visita a este grupo de cavernas, um corredor e uma escada a céu aberto levavam às grutas budistas. Portanto todos deviam passar ali – e só por ali – para continuar o passeio.
A italiana caminhava à frente, brava e só, seguida de perto por um grupo de franceses desconfiados – e eu, que me mantinha um pouquinho mais afastado.

Súbito um grupo de macacos cercou a entrada do corredor; um deles, o alfa atrevido, escalou uma mureta e encarou fixamente a viajante solitária, possivelmente adivinhando o conteúdo que ela carregava sob o braço. A mulher congelou. Os franceses recuaram por estratégia. Precavido, me detive até sentir por onde desembocaria a cena.

De fato, o macaco farejara medo na beldade latina e, sem titubear, saltou sobre sua bolsa de grife. O instinto da moça foi o de lutar. E gritar muito.

Antes que os guardas florestais, matando-se de rir da cena em outro canto, interviessem em favor dela, outros cinco macacos do bando partiram para cima da mulher. Horrorizados, os franceses refugiaram-se em exclamações “oh, mon dieu”! Enquanto isso, a valente europeia se recusava a entregar a bolsa e gritava più forte.

Por fim, os dois vigias, cada um portando uma vara, espantaram os animais com gestos e ameaças. Já era tarde, pois a elegantíssima senhora fora humilhada pelos primatas tinhosos e de modos mafiosos; ela reclamava em voz alta “non voglio stare qui, andiamo via, andiamo via!”, desabafo de quem sentiu o desaforo de ser feita gato-sapato pelos bichinhos.

Mesmos depois de largar a bolsa, os macacos prosseguiram na intimidação aos demais circundantes, em sua ronda naquela passagem, como se dissessem: – “próximo”!

Nenhum dos presenciais na cena ousou atravessar o corredor indo-polonês.

Inclusive eu.

Nunca foi prudente testar a profundidade da torrente com os dois pés: principalmente de um rio sagrado.

Voo da montanha, Cordilheira do Himalaia, Monte Everest. 20 de agosto de 2013.

Tunner: Provavelmente somos os primeiros turistas que eles recebem desde a guerra.
Kit Moresby: Tunner, não somos turistas, somos viajantes.
Tunner: Ah, e qual a diferença?
Port Moresby: Um turista é aquele que pensa em voltar pra casa logo na chegada, Tunner.
Kit Moresby: Ao passo que um viajante talvez nunca mais volte.
Tunner: Você quer dizer que eu sou um turista.
Kit Moresby: Sim, Tunner. E eu sou meio a meio.

Diálogo do filme O Céu Que Nos Protege (The Sheltering Sky, 1990), dirigido por Bernardo Bertulucci, que inspirou a criação deste relato.

Evoé, amigos. Após tantos e bons conselhos, iniciei a escritura do Tour do Alex, uma forma de registrar as experiências de um viajante que busca decifrar o mundo sempre como se fosse a primeira descoberta.

Brinquei muito menino com os atlas, em reinos distantes, montanhas geladas, o Monte Everest. Sei que seus 8.848 metros nunca vou escalar. Mas um velho sonho de Ícaro e cartógrafo diletante se cumpriu em 20 agosto de 2013, em sobrevoo calmo sobre nuvens de monções, rompidas por ele, o verdadeiro Olimpo, o maioral de pálida névoa dos Himalaias.