A Copa e seu significado na Bahia

Mais que qualquer outra na América Portuguesa, certo que a Cidade da Bahia é onde o povo mais se apropria da brasilidade, midiática, com tudo de bom e ruim que acarreta ao portador esta identidade cultural. Melting-pot que se originou nas viradas de olho que Carmem Miranda assimilou de Dorival Caymmi e espalhou pro mundo por meio de Róliúdi.

É o que é que a baiana tem, sim. Todos temos.

Não é à toa que a divulgação da cultura brasileira insista em projetar esta faceta do sujeito frajola que ora também nos habita. Não chega a convencer muitos de nós de que coletivamente sejamos tão faceiros quanto a Brazilian Bombshell, simpáticos joões valentões praieiros, mestiços criativos em jangada de sonhos à caminho do mar, oriundos da terra do samba, mulatos e futebol? Tudo isso tem no tabuleiro da Roma Negra do Caê; onde sempre cabe botar castanha de caju e um bocadinho mais.

Baiano me descobri por estar fixado até o fim dos meus dias no folclórico cancioneiro dos Caymmi ou empanado no ouro em pó de uma de suas 365 igrejas – na de São Francisco, que é a mais linda, não se pode mais casar… Ecoo baianamente na perfeição vocal do João Gilberto, apaixonado que fico por cada moça recostada nas palmeiras da estrada antiga estreita e torta, daí desvirginado me assumo de vez a nova Tieta do Agreste, e depois me nauseio na miséria dos sertões do Glauber, rochoso sem deus a sós com o diabo sentado entre as pernas do Velho Chico; é quando grunho Meu Nome é Gal jurando ter nas costas a afinação da Gal; flerto com um negão no Olodum do Pelô, e depois rezo pelas vias das dúvidas e prezo pela eternidade da Dona Canô.

De nada valeu, mas me benzi antes do jogo com a Mãe-Menininha do Gantois; amarrei a sorte dos argentinos no altar da Iemanjá, verdadeira celeste e branca como a Conceição que mora no mor-altar; tropecei pelas ruas sujas dos predinhos da Baixa, sem eira nem beira nem tinta, onde se fareja em todo esplendor a decadência econômica, senti medo de uns pobres zumbis contaminados pelo vírus do crack, pra depois me assombrar de vez à frente do casarão bafudo que ressentia seus velhos tempos com o Imperador.

E no regresso ao aeroporto, antes do caminho derradeiro e tingido pelo verde fenomenal que emana dos feixes no bambuzal, constatei as mesmas periferias do meu Sudeste, sem gabarito ou reboco, vizinhanças pós-bombardeio sem guerra, padecendo da velha e triste pobreza sistêmica, ouvi alguém lendo com perplexidade o aumento exponencial de seus índices de homicídios estampados no jornal local, neste lugar com tradição de dados bem menos alarmantes e etc.

Enfim, eu vim dessa Bahia, e algum dia eu volto pra lá, talvez assim me reinvente no ócio deslocado do eixo repetitivo-neurótico da so-called excelsa vida shóp-cents. Não que lá na Bahia eles não existam – mas eles não são tão essenciais pra fazer luzir a própria estampa. Conte-se com meu favorito Caetano que dizia: “veio e não veio quem eu desejaria, se dependesse de mim: São Paulo em cheio nas luzes da Bahia, tudo de bom e ruim – era o fim, é o fim, mas o fim é demais também…”

Mas e a Copa? Ah, esse legado tá sendo massa, meu rei!

Diálogo entre putas na Plaza de Chueca, Madrid!

– Hilda Fura-olho do cão!
– Grita baixo, ô Antonieta da Peste.
– Banquei tua passagem, ex-pão-com-ovo Zona Leste!
– Não me incorpora a brasuca barulhenta, senão…
– Ou então o-que-o-que, ladra de macho alheio!
– Te denuncio pros polícia da praça, vagaba sem-papéis.
– Traíra das amiga por passaporte e cama c’o véio!
– Se for pra ser cínica, “vão-se os dedos, fic’os anéis”.
– Mas antes abr’outra boceta nessa cara lavada à peroba!
– Aqui não tem lei da peixeira, tercermundista covarde.
– Poder de vingança é mais antigo, pérfida duma ova!
– Deixo paga a cuba libre, amostra da minha bondade.
– Hilda, num levanta ainda, perra bandida!
– Tieta, volta pra internet d’agreste vida.
– !
– .

A casamenteira de Quéops

A casamenteira de Quéops

Havia dois anos que Dona Regina comparecera a um duríssimo encontro com a depressão, espécie de coma da vontade das alegrias, e desde então não lograva despedir a indesejável visita do ensolarado apartamento a poucos passos do areal do Gonzaga. O devotado marido fora ceifado numa saída de banco em Santos, onde ambos aposentados se refugiaram após conquistar seu eldorado no interior de São Paulo, de onde regressaram pelo caminho do mar, rumo ao mesmo porto que os recebera pequerruchos nos anos 1950, com o justo regozijo dos que galgaram a Muralha e viram correspondidas suas primeiras expectativas. Depois da tragédia pintada em cores berrantes do trópico local, a pobre mulher perecia na desesperança das hécubas, desancada de descendentes, pois não fora agraciada com as bênçãos de Cibeles.

Felizmente a melancolia tirou dia de folga quando a vizinha Iolanda, insistente qual pregadora cristã de porta em porta, a arrastou para um bate-chinela inaugural da melhor idade num clube reformado adjacente à orla. Na falda do salão de baile, Dona Regina enturmou-se na mesa de convivas entusiasmados pelo carisma de Iolanda, que sentou a viúva estrategicamente ao lado de outro viúvo, o senhor Alcides, gafieira de mão cheia e conversador que lhe fez a corte numa prosa que pronto coriscou para o assunto de viagens, passatempo favorito daquela patota de seniores. Nunca me encorajei de entrar no avião, seu Alcides, e depois de velha que não me enfuno dessas ousadias, Que nada, minha dileta, se segurar sua mão tenaz a ponto de não desgrudar, o sonho da senhora principia antes mesmo de dormitar com o mantra calmo do motor e o embalo que reproduz a trepidação leve, Sabe que não tem precisão de me chamar senhora, Alcides, Que bom que pra você sou só você também.

Pela primeira vez Dona Regina não experimentava a culpa do primeiro estágio da viuvez, assim não se censurava por prazeres não partilhados com seu querido e finado; mesmo não bailando pelo salão naquele ocaso de sábado, uma fresta na persiana permitiu que o sol lhe lambesse uma ferida da ausência, labareda tépida que forjou em seu rosto sulcado pelas enxurradas do luto um novo sorriso. Também por prima ocasião, Iolanda testemunhou a alvura dos dentes legítimos na boca da amiga, e mais que um calor de abrasar longos meses de eclipse n’alma, o inesperado convite de Alcides para que a ex-professora de educação artística se juntasse ao grupo que projetava um cruzeiro pelo Nilo egípcio fulgiu delicado como uma aurora no inverno boreal – insuflou-lhe uma brasa esquecida de vaidade. Dona Regina aquiesceu, e Iolanda sentiu firmes os músculos de seus dons de casamenteira.

Diferente da suspeita inicial, nossa viúva por fim alegre não temia o sonho de Ícaro, absolutamente, tanto que se empolgou em alarido mental no preciso momento em que o Boeing descolou-se da pista de Guarulhos e flutuou urubu-rei. O próprio Alcides parecia mais apreensivo que a possível namorada futura, quiçá por isso não tenha quisto soltar sua mão durante o restante da jornada aérea.

Iolanda mostrou-se uma cicerone perfeita logo na área de trânsito do aeroporto de Istambul, de onde embarcariam numa segunda aeronave ao Cairo, auxiliando seus amigos e, em especial, o duo de viúvos como se fosse a filha coletiva do grupo.

A poucos minutos da aterrissagem, assim que o piloto anunciou aos ocupantes das janelas à esquerda que estes eram os eleitos na loteria dos assentos, com a visão das Grandes Pirâmides na aproximação máxima de um Google Maps sobre a árida esplanada, Dona Regina emocionou-se taquicárdica e em arrepio de beijo suave no pescoço, Eu que não imaginava acariciar Quéops, Quéfren e Miquerinos com o olhar além da telinha em alta definição num History Channel eu que nem morta amontaria estes dragões a jato eu que de mãos dadas com esse momento com este este hom… E antes que o remorso como punição embaciasse sua vista, ele se adiantou e disse que os dois companheiros apartados de tão sublime instante deveriam estar radiantes por eles, caso uma consciência além-túmulo sobrevivesse ao desaparecimento como cultuavam os egípcios antigos.

Com o amadurecimento dos dias, outras pequeninas lindezas se acumularam na viagem quais grãozinhos de areia que em bodas com Éolo desenham as formidáveis dunas do Saara, e a vitória da intuição de Iolanda coroou-se no interior da magnífica Pirâmide: na estreitíssima entrada que dá acesso ao monumento, Seu Alcides descobriu que temia um terremoto, E se um soterramento me calasse o bom humor sob estes milhões de toneladas em pedra, bem quando o Amor ponteiro voltou a me flechar, diacho de destino essa preocupação traçada em mãos mais suadas que garrafa congelada transudando a quarenta graus na enseada do Zé Menino, vista turva perna bamba vixi-maria que escadaria íngreme sobe bom menino Alcides, meu filho, finge que tá tudo bem que quanto mais rápido for mais rápido você volta.

Dona Regina notou à beira do sarcófago vazio, no âmago claustrofóbico de Quéops, que ela suava de amor – e seu arfante namorado, de pavor. Em retribuição ao gesto que a salvou na fobia no voo, ela segurou-lhe a mão o mais junto que pôde das cavidades latejantes do próprio peito, enquanto lhe acalmava cantarolando uns versinhos de Aida “questo fervido amore che oppressa e schiava, come raggio di sol qui mi beava…” até a saída do túmulo.

Eles já regressaram ao Brasil e no fim deste mês vão à Igreja da Natividade.

As pegadoras de Luxor

Ou as turistas do amor no Egito

Jorge estava odiando Luiza à hora do jantar naquela ribeira coaxante do Nilo, a um pulinho do centro de Luxor. Principiou-se a sinfonia de minaretes e grilos, cacofonia e fuga para sua entrega à melancolia, que um vago arrependimento lhe abatera pela primeira vez ali à luz de velas vermelhas assombradas por mosquitos com sua esposa inda acesa. Cedi a um casamento morno pela promessa de salvação com a mulher boa sincera farta de bossa que ora me afastou de nefastos caminhos, isso podia ter destruído minha reputação de jurista antes mesmo de ser aprovado em exame público, era tão linda minha egiptóloga professora da USP no princípio do afeto quando me livrou de becos e recaídas na retorta noite de São Paulo é ela que age agora de modos tão-não-sei por-que-tais ela passou os dois últimos dias afoita em nossa primeira viagem longa e eu não posso nem quero sentir-me um bichinho ingrato enquanto ela for minha for minha guia de primeira classe fez-que-fez para visitarmos os templos todos num raio de cento e cinqüenta quilômetros a partir deste lugar, sinto culpa por não partilhar de seu fogo por Ramsés II e a rainha da paz Hatshepsut, custa-me prestar-lhe atenção quando interpreta os hieróglifos dos muros incandescentes amarelos, de seus olhos semicerrados pela luz do deserto, das minhas mãos desidratadas em calor argiloso de agosto, ai como arde o desamor em flor, não sei bem se está clara a culpa o desinteresse e essa ausência da palavra cortês, qual me denunciei na véspera da boda no tumulto de um sonho cruel no qual eu fugia de seu farto colo nalguma hora agá gritando-lhe com indiferença que não a desejava mais feito tantos homens que se queixam no pós-coito da mulher outrora amada.

Por sua vez, Luiza fingiu não captar o tédio nu-outro e discorreu com força do entusiasmo sobre o passeio em balão tapete mágico no qual o casal surfaria as primevas horas que abrem alas à dedirrósea aurora seguinte daí ele deu de ombros que não repousaria direito por causa do passeio em balão na madrugada que em breve rebentaria enfim ele clamou do tempero da comida, que injusto ela logo defendeu suas escolhas que era este o melhor restaurante da gastronomia local fruto do casamento feliz de um mestre-cuca egípcio cansado do caos do Cairo e sua chef irlandesa apaixonada pelos da margem direita do rio-dádiva, assim deu que ele arrebatou do ar o ataque sutil da fêmea ofendida e pediu a conta sem sobremesa café ou chá açucarado de hortelã em demasia. Caminharam até o jardim do hotel flanqueando a barranca do Nilo como em filme mudo estrelado por múmias. Ela finalmente chiou do calor e ascendeu ao quarto tendo por álibi o ar condicionado e a precisão de descansar para a vindoura aventura nos ares, enquanto ele só carecia de outra dose cavalar de tônica-e-gim praguentar a noite insone que teria pela frente por fim.

No entanto este Jorge confuso não esquadrinhava o bar à procura de mais mulher simplesmente, buscava outra companhia para esquecer a dúvida acesa de um vaga-lume à deriva num ilhéu de separação, se ela dorme e desperta automática como médico plantonista, para mim, virar noite é preferível a madrugar às quatro em ponto da matina, depois aqui na barra do bar o papo com Mahmoud brilha sempre no vozerio das alegrias, estudo árabe com eles hoje decorei ámar arbatashar, lua quatorze, formoso jeito de encantar a menina pois que ela emprestou a lindeza do plenilúnio em décimo quarto dia do islâmico mês.

Naquele instante avizinhou-se de Jorge uma senhorita Anne, mais adorável pela simpatia que pelo padrão-beleza ocidental, atarracada que podia ser considerada outra espécie de lua cheia: escocesa de frugal cabeleira ruiva em rostinho redondo de pele vermelha e risonha, apresentadora de TV em Glasgow, excitando mais e mais sua verve a cada gole de um álcool forte e assim me narrou sua paixão por Ahmed rapagão robusto que ela visitava por oitava vez naquele ano por sorte voava-se direto do Reino Unido ao Reino dos Faraós durante plena revolução dos jasmins sem cruzar pela Praça Tahrir e com ele ela forjava planos de habitar perto do Vale dos Reis compraria um dois-quartos em frente ao rio-deus pela bagatela de trinta mil libras logo em seguida chegou sua amiga Cristina alemã loura septuagenária, também pegadora de egípcios, porém sem nada muito romantizar.

Mudaram-se à mesa de Cristina que entornava espumante e a cada taça virada ficava ainda mais estrábica e disparava sobre a mesa seu mantra copta tonight-I-will-fuck-fuck-fuck batendo uma mão contra a outra em gesto vulgar de cópula, de forma que Jorge em seu íntimo se escandalizou bem.

O namorado de Anne baixou no bar e carregou-a pra dançar.

Momento sublime de Jorge e Cristina a sós.

A septuagenária pediu encarecidamente que Jorge abandonasse a mesa antes da chegada do paquera trintão: Ahmed é bofe ciumento, deus-nos-livre se vir você pelejando em cima de mim, não queima meu filme, seu moço, volta pra barra fingindo que nunca mais me viu.

Jorge comprou um charuto e foi espantar sua caretice com os pernilongos do jardim.

Uma passagem pela Índia: brevíssima busca do português perdido

Uma passagem pela Índia: brevíssima busca do português perdido

Extravagante. Desigual e opulenta. Miserável. Monumental, bela e suja.
Talvez porque qualquer adjetivo caiba nos juízos que os visitantes emitam sobre um passeio às Índias, por isso mesmo o subcontinente seja inesquecível – para o bem e para o mal.

Existe claro o inigualável Taj Mahal, manjada obra dos persas, que muita gente ainda não intuiu se tratar de uma joia da cultura muçulmana. Há a lã da Caxemira, região que se gaba de ser a mais bela do mundo. E cristãos aos borbotões à margem do Ganges. Além de um Gandhi que deploraria a Bomba. E esta Mumbai que entristece nossa vista com tanta riqueza e miséria, depois de esnobar nosso idioma e coroar-se ex-miss-Bombaim. Até a língua inglesa ganhou um novo significado por causa dos povos hindus….

No país que é mais populoso que todas as Américas unidas.

Cruzei desde pessoas que visitavam o país, pagando pra ver o Taj Mahal apenas num fim de semana, até estrangeiros que começaram no velho e bom sabático de três meses, os quais acabaram se tornando uma vida inteira.

Ninguém lhe é indiferente, ó Índia.

Em nossa cultura ibero-americana aprendemos a amar desde cedo o caminho das Índias nas cartilhas das grandes navegações, e depois nos aprofundarmos no gosto por esta porção de oriente exótico, em escrita viajante de Camões sobre os feitos de Vasco da Gama e os seus, no contorno ao Cabo das Tormentas: da emboscada em Mombaça à conquista do território de Goa e Bombaim.

Alexandre Magno, cerca de um milênio antes, cruzou desertos e cordilheiras para combater batalhões de elefantes e dominar mesmo que por curto tempo alguns reinos do Hindustão; porém sua língua helênica não impregnou nenhuma porção do vale gangético, diferente da cultura lusitana, que colonizou a região de Goa até 1963 e marca presença até hoje, seja na comida, arquitetura ou toponímia.

Com tamanho panorama saudosista, era clara expectativa ouvir o português melífluo.

Infelizmente tal momento não existiu, que depois de guardar para o último dia de visita o encontro com o cozinheiro do hotel que era fluente em nosso idioma, descobri que ele não poderia comparecer, que o senhor Menezes tinha morrido naquele mesmo dia, como havia de ser.

***

Exuberante terra de Goa, paisagem de verdura boa em relva de matiz infinito, igreja franciscana refrescada nas cansadas monções, alimento temperado a vindalho e especiarias das Índias deste vale, ai de que vale essa vida tão nossa e portuguesa sem essa certeza tropical: morremos inundando matas com um sangue que já nasce frio, e de tal nascente só mais rio, que de nada o serve o chorar, pois no fundo ainda eu-rio num próximo avatar, serei outro peixe fisgado pra sempre deste arábico doce mar. Qu’ inda é doce morrer no mar, Dorival, nas ondas verdes de um novo lar.

Notas breves sobre o Nepal

Notas breves sobre o Nepal

Se quiser ir a Mustang, separe uma semana a mais e alguns dólares: para visitar a região que dava nome a um cigarro da infância, os estrangeiros devem pagar uma taxa aos locais de 50 dólares diários (e um mínimo de 500) para adentrar o mítico reino.

Se resolver visitar o vizinho Butão, separe entre 200 e 250 dólares por dia (varia de acordo com o mês). Sim, o governo daquele país exige esse gasto mínimo diário, no intuito de atrair os mais endinheirados.

Se preferir uma caminhada até o acampamento na base do Everest, separe no mínimo seis dias para subir e outros quatro para descer os cinco mil metros.

Se a energia de Buda atrair você para o local de seu nascimento, Lumbini, reserve ao menos três jornadas.

Leve um remédio para desarranjos intestinais.

Ou compre o remédio na farmácia local.

Evite julho ou agosto, que é abafado e chove muito.

Ou vá em julho ou agosto porque sai mais barato.

Vá a Pokhara de avião: são oito horas de estrada.

Ou alugue carro e motorista e vá de carro até Pokhara, apreciando a paisagem local.

Relaxe num templo.

Dê boas gorjetas, leve camisetas do Brasil, doe-as com outras roupas. Desapegue mesmo. O olhar de contentamento não tem preço.

Nepal Pictures apresenta: O pequeno Buda e o planeta dos macacos

Bernardo Bertolucci é sócio do clube de cineastas iluminados que, após sua morte terrena, vão habitar os Campos Elísios por não terem legado ao mundo um único filme ruim. Sua trilogia oriental, formada por três grandes obras, triunfou junto às plateias e crítica mundiais no final do século XX: O último imperador (The last emperor, 1987), O céu que nos protege (The sheltering sky, 1990) e O pequeno Buda (Little Buddha, 1993).

Este último, delicado relato sobre a vida de Siddhārtha Gautama, nascido em Lumbini no Nepal, mais tarde chamado Shakyamuni ou simplesmente Buddha, teve muitas de suas locações nos arredores de Catmandu. No quintal do hotel onde fiquei, por exemplo, o Gokarna Forest Resort, há uma árvore sagrada tanto para budistas quanto para hindus, a poderosa Ficus elastica morácea, sob a qual o personagem de Keanu Reeves fez suas principais cenas de meditação.

Essa hospedaria fica a apenas cinco quilômetros do aeroporto de Catmandu, na entrada da floresta Gokarna, um oásis próximo à região metropolitana onde vivem mais de dois milhões de pessoas. Ali dá para entender de onde vêm estas visões do paraíso e fantasias do shangri-la hollywoodiano a respeito do Nepal, mesmo que a uma pequena distância da reserva natural fique uma capital poluída, de trânsito caótico e sem saneamento básico, enfim, inspiração para a mesma ladainha que pode ser desfiada sobre outras metrópoles pobres do mundo.

De volta ao bucolismo de Gokarna. Após dar entrada nessa espécie de hotel-fazenda, chamou-me a atenção um aviso: cuidado com os macacos. Havia uma placa em toda santa janela dos quartos para nunca deixá-las abertas ao sair do apartamento, senão eles podiam invadir para roubar comida. Como estes animais são sagrados, acabam mandando no pedaço. No hinduísmo, além das vacas, outros bichos também recebem tratamento VIP, principalmente as fêmeas (aliás, achei superpositivo não haver cães e outros animais vítimas de atropelamento nas estradas que percorri no subcontinente indiano, diferente de outro lugar memorável que visitei recentemente, o Egito, onde me comoveu o tanto de cachorros mortos na beira das rodovias).

Depois do check-in, explorar a natureza ao redor foi uma boa pedida. Ao lado da árvore que foi personagem do filme, há um caminho que leva à floresta, a qual pode ser visitada com o auxílio de um guia local. Mais placas pedem precaução com os bichos selvagens. Eis que me aparece uma enorme borboleta azul, como uma joia esculpida de lápis-lazúli, ora pingente sobre um cipó, ora bailando no ar frágil como uma bolha de sabão. A sinfonia dos pássaros também estabelece um diapasão de paz no espírito, nesta espécie de santuário em que ornitólogos já identificaram mais de 50 tipos diferentes de aves.

Após curtir a floresta, relaxar no spa mostra-se outra excelente opção. Uma hora e quinze minutos de massagem ayurvédica sai por menos de 80 reais (em São Paulo, custa pelo menos o triplo deste valor). Incrível combinação de preço e qualidade. E assim que o estômago despertar, o restaurante de especialidades nepalesas e internacionais do próprio resort não desapontará os paladares mais exigentes.

Enfim, em um único dia brinca-se de dolce vita, vive-se uma experiência cinematográfica em algum set sincrético onde convivem budismo, hinduístas e observadores de pássaros, neste planeta à parte de primatas sagrados.

***

Adendo cinematográfico: o filme mais prestigiado da trilogia, O último imperador, ganhou uma baciada de Oscars e foi a última vitória da Columbia Pictures, hoje Sony Pictures, na categoria de melhor filme. O estúdio de Culver City detém o recorde de 12 estatuetas da academia na categoria principal. Estatística de respeito.

A moça de Bangladesh e o cavalheiro sueco: de noite no Nepal

A moça de Bangladesh e um cavalheiro sueco: de noite no Nepal

Em julho e agosto chove a cântaros no sul da Ásia. Há proveito em se viajar nesta época pelos preços de baixa temporada, embora seja visto como algo desvantajoso para quem não tolera a umidade e o calor de uma sauna. Desde garoto aclimatado ao sertão paulista, o bafo quente e tropical não me amola mais – mesmo quando mal saímos do banho, já estamos suando em bica.

Em Catmandu, o deus das monções mostrou seu poder na matinê de um domingo abafado no mês da canícula. O céu desmoronou por volta das 18h. Como todo ano uma região do subcontinente é premiada com enchentes torrenciais, estava com toda pinta de ser a hora e vez do Nepal. A tempestade declarou trégua por volta das 21h, quando passou ao chuvisco ininterrupto. Frequentes na região, os cortes de energia se intercalavam com os relâmpagos cada vez mais distantes.

Peguei um táxi em frente ao hotel, estava na hora de mergulhar na noite local molhada. Poucas vias dispõem de iluminação pública e asfalto, mesmo na região mais central da cidade. Durante o percurso a cidade se tingiu de breu, escura e brilhando, pois os faróis dos carros viravam luas dentro das poças d’água. Depois de várias vacas preguiçosas perambulando pelo caminho, aportei no bairro internacional da cidade, o Thamel. Levava anotados nomes de vários bares e restaurantes da região, todos recomendados, embora não houvesse exatamente um endereço e numeração a serem seguidos – havia apenas apontamentos do tipo “bar x”, perto do “hotel y”. Forte, né?

A comunicação com o chofer beirava a precariedade, e depois de meia hora perdidos, me achei numa placa, dentre dezenas de caóticos luminosos, que tinha o nome de um bar local de coquetéis, o Maya Pub. Infelizmente estava às moscas. Insisti em outros três lugares diferentes, dando com todas as portas fechadas. Era hora de descer do carro e arriscar um desfecho a pé.

Entre meios-fios inundados e a rua enlameada, caminhei atraído pela música que vibrava naquela atmosfera mole e gelatinosa. De fato era um show ao vivo no pub de bandeira e cerveja irlandesas, o Paddy Foley’s. “Vai ter que ser esse aqui, o resto é puro silêncio.” A banda de locais intercalava Nirvana, Sex Pistols, além de suas próprias composições em inglês. Bacaníssimas. Havia também uns seis clientes numa mesa à esquerda da que me reservaram, os quais me pareceram ser do subcontinente indiano (composto também pelos outros países da região – Índia, Paquistão, Bangladesh e Butão). Na mesa oposta, um norte-americano puxou papo e desembestou a falar espanhol depois de saber que eu era brasileiro. Viva a diversidade.

No mesmo instante adentrou um casal que polarizaria as atenções dali por diante. Uma moça esguia, moreníssima e magra sorria animada ao lado de um homem branco robusto que, se não fosse careca, certamente seria loiro. Ambos se portavam de forma altiva, embora ela tentasse dissimular algum receio armado atrás do olhar, um sentimento em zona de conflito entre a melancolia e a alegria. O sueco parecia um sujeito da realeza, retratado nalguma capa de revista europeia de fofoca, trazido à vida naquele bar e só para ela. Tocavam-se como quem se ama há muito tempo. Pediram gim tônica e Kir Royal. O gim pra ela. Tudo em conformidade, até que a mesa vizinha começou a debochar do casal, e mais que chacota, havia de fato hostilidade no ar.

Nesses momentos, prefiro ação à reflexão: prontamente convidei o casal ofendido à minha companhia, depois de farejar algum preconceito em relação ao duo. A princípio me pareceram desconfiados, mas logo se dispuseram a migrar de mesa. Minha intuição fez sentido. Em menos de 15 minutos a mesa hostil partiu, visivelmente incomodada com a alegria da moça bengali, do sueco calvo e do brasileiro à procura de amigos. Soube de várias coisas a respeito deles, de como se conheceram pela web etc, pois ficamos no pub até o fim.

Fizemos amizade com o vocalista da banda, que ficou indignado com a atitude coletiva da mesa. Tentou pedir desculpas, começando por “nem todos os nepaleses são assim…”. Que bobagem, interrompeu o sueco, que na terra dele havia idiotas da mesma estirpe, mas felizmente não eram a maioria, como não deveriam ser ali. Em retribuição, o vocalista cantou-lhes em homenagem “Come as you are”.

Voo da montanha, Cordilheira do Himalaia, Monte Everest. 20 de agosto de 2013.

Tunner: Provavelmente somos os primeiros turistas que eles recebem desde a guerra.
Kit Moresby: Tunner, não somos turistas, somos viajantes.
Tunner: Ah, e qual a diferença?
Port Moresby: Um turista é aquele que pensa em voltar pra casa logo na chegada, Tunner.
Kit Moresby: Ao passo que um viajante talvez nunca mais volte.
Tunner: Você quer dizer que eu sou um turista.
Kit Moresby: Sim, Tunner. E eu sou meio a meio.

Diálogo do filme O Céu Que Nos Protege (The Sheltering Sky, 1990), dirigido por Bernardo Bertulucci, que inspirou a criação deste relato.

Evoé, amigos. Após tantos e bons conselhos, iniciei a escritura do Tour do Alex, uma forma de registrar as experiências de um viajante que busca decifrar o mundo sempre como se fosse a primeira descoberta.

Brinquei muito menino com os atlas, em reinos distantes, montanhas geladas, o Monte Everest. Sei que seus 8.848 metros nunca vou escalar. Mas um velho sonho de Ícaro e cartógrafo diletante se cumpriu em 20 agosto de 2013, em sobrevoo calmo sobre nuvens de monções, rompidas por ele, o verdadeiro Olimpo, o maioral de pálida névoa dos Himalaias.