A Copa e seu significado na Bahia

Mais que qualquer outra na América Portuguesa, certo que a Cidade da Bahia é onde o povo mais se apropria da brasilidade, midiática, com tudo de bom e ruim que acarreta ao portador esta identidade cultural. Melting-pot que se originou nas viradas de olho que Carmem Miranda assimilou de Dorival Caymmi e espalhou pro mundo por meio de Róliúdi.

É o que é que a baiana tem, sim. Todos temos.

Não é à toa que a divulgação da cultura brasileira insista em projetar esta faceta do sujeito frajola que ora também nos habita. Não chega a convencer muitos de nós de que coletivamente sejamos tão faceiros quanto a Brazilian Bombshell, simpáticos joões valentões praieiros, mestiços criativos em jangada de sonhos à caminho do mar, oriundos da terra do samba, mulatos e futebol? Tudo isso tem no tabuleiro da Roma Negra do Caê; onde sempre cabe botar castanha de caju e um bocadinho mais.

Baiano me descobri por estar fixado até o fim dos meus dias no folclórico cancioneiro dos Caymmi ou empanado no ouro em pó de uma de suas 365 igrejas – na de São Francisco, que é a mais linda, não se pode mais casar… Ecoo baianamente na perfeição vocal do João Gilberto, apaixonado que fico por cada moça recostada nas palmeiras da estrada antiga estreita e torta, daí desvirginado me assumo de vez a nova Tieta do Agreste, e depois me nauseio na miséria dos sertões do Glauber, rochoso sem deus a sós com o diabo sentado entre as pernas do Velho Chico; é quando grunho Meu Nome é Gal jurando ter nas costas a afinação da Gal; flerto com um negão no Olodum do Pelô, e depois rezo pelas vias das dúvidas e prezo pela eternidade da Dona Canô.

De nada valeu, mas me benzi antes do jogo com a Mãe-Menininha do Gantois; amarrei a sorte dos argentinos no altar da Iemanjá, verdadeira celeste e branca como a Conceição que mora no mor-altar; tropecei pelas ruas sujas dos predinhos da Baixa, sem eira nem beira nem tinta, onde se fareja em todo esplendor a decadência econômica, senti medo de uns pobres zumbis contaminados pelo vírus do crack, pra depois me assombrar de vez à frente do casarão bafudo que ressentia seus velhos tempos com o Imperador.

E no regresso ao aeroporto, antes do caminho derradeiro e tingido pelo verde fenomenal que emana dos feixes no bambuzal, constatei as mesmas periferias do meu Sudeste, sem gabarito ou reboco, vizinhanças pós-bombardeio sem guerra, padecendo da velha e triste pobreza sistêmica, ouvi alguém lendo com perplexidade o aumento exponencial de seus índices de homicídios estampados no jornal local, neste lugar com tradição de dados bem menos alarmantes e etc.

Enfim, eu vim dessa Bahia, e algum dia eu volto pra lá, talvez assim me reinvente no ócio deslocado do eixo repetitivo-neurótico da so-called excelsa vida shóp-cents. Não que lá na Bahia eles não existam – mas eles não são tão essenciais pra fazer luzir a própria estampa. Conte-se com meu favorito Caetano que dizia: “veio e não veio quem eu desejaria, se dependesse de mim: São Paulo em cheio nas luzes da Bahia, tudo de bom e ruim – era o fim, é o fim, mas o fim é demais também…”

Mas e a Copa? Ah, esse legado tá sendo massa, meu rei!

As pegadoras de Luxor

Ou as turistas do amor no Egito

Jorge estava odiando Luiza à hora do jantar naquela ribeira coaxante do Nilo, a um pulinho do centro de Luxor. Principiou-se a sinfonia de minaretes e grilos, cacofonia e fuga para sua entrega à melancolia, que um vago arrependimento lhe abatera pela primeira vez ali à luz de velas vermelhas assombradas por mosquitos com sua esposa inda acesa. Cedi a um casamento morno pela promessa de salvação com a mulher boa sincera farta de bossa que ora me afastou de nefastos caminhos, isso podia ter destruído minha reputação de jurista antes mesmo de ser aprovado em exame público, era tão linda minha egiptóloga professora da USP no princípio do afeto quando me livrou de becos e recaídas na retorta noite de São Paulo é ela que age agora de modos tão-não-sei por-que-tais ela passou os dois últimos dias afoita em nossa primeira viagem longa e eu não posso nem quero sentir-me um bichinho ingrato enquanto ela for minha for minha guia de primeira classe fez-que-fez para visitarmos os templos todos num raio de cento e cinqüenta quilômetros a partir deste lugar, sinto culpa por não partilhar de seu fogo por Ramsés II e a rainha da paz Hatshepsut, custa-me prestar-lhe atenção quando interpreta os hieróglifos dos muros incandescentes amarelos, de seus olhos semicerrados pela luz do deserto, das minhas mãos desidratadas em calor argiloso de agosto, ai como arde o desamor em flor, não sei bem se está clara a culpa o desinteresse e essa ausência da palavra cortês, qual me denunciei na véspera da boda no tumulto de um sonho cruel no qual eu fugia de seu farto colo nalguma hora agá gritando-lhe com indiferença que não a desejava mais feito tantos homens que se queixam no pós-coito da mulher outrora amada.

Por sua vez, Luiza fingiu não captar o tédio nu-outro e discorreu com força do entusiasmo sobre o passeio em balão tapete mágico no qual o casal surfaria as primevas horas que abrem alas à dedirrósea aurora seguinte daí ele deu de ombros que não repousaria direito por causa do passeio em balão na madrugada que em breve rebentaria enfim ele clamou do tempero da comida, que injusto ela logo defendeu suas escolhas que era este o melhor restaurante da gastronomia local fruto do casamento feliz de um mestre-cuca egípcio cansado do caos do Cairo e sua chef irlandesa apaixonada pelos da margem direita do rio-dádiva, assim deu que ele arrebatou do ar o ataque sutil da fêmea ofendida e pediu a conta sem sobremesa café ou chá açucarado de hortelã em demasia. Caminharam até o jardim do hotel flanqueando a barranca do Nilo como em filme mudo estrelado por múmias. Ela finalmente chiou do calor e ascendeu ao quarto tendo por álibi o ar condicionado e a precisão de descansar para a vindoura aventura nos ares, enquanto ele só carecia de outra dose cavalar de tônica-e-gim praguentar a noite insone que teria pela frente por fim.

No entanto este Jorge confuso não esquadrinhava o bar à procura de mais mulher simplesmente, buscava outra companhia para esquecer a dúvida acesa de um vaga-lume à deriva num ilhéu de separação, se ela dorme e desperta automática como médico plantonista, para mim, virar noite é preferível a madrugar às quatro em ponto da matina, depois aqui na barra do bar o papo com Mahmoud brilha sempre no vozerio das alegrias, estudo árabe com eles hoje decorei ámar arbatashar, lua quatorze, formoso jeito de encantar a menina pois que ela emprestou a lindeza do plenilúnio em décimo quarto dia do islâmico mês.

Naquele instante avizinhou-se de Jorge uma senhorita Anne, mais adorável pela simpatia que pelo padrão-beleza ocidental, atarracada que podia ser considerada outra espécie de lua cheia: escocesa de frugal cabeleira ruiva em rostinho redondo de pele vermelha e risonha, apresentadora de TV em Glasgow, excitando mais e mais sua verve a cada gole de um álcool forte e assim me narrou sua paixão por Ahmed rapagão robusto que ela visitava por oitava vez naquele ano por sorte voava-se direto do Reino Unido ao Reino dos Faraós durante plena revolução dos jasmins sem cruzar pela Praça Tahrir e com ele ela forjava planos de habitar perto do Vale dos Reis compraria um dois-quartos em frente ao rio-deus pela bagatela de trinta mil libras logo em seguida chegou sua amiga Cristina alemã loura septuagenária, também pegadora de egípcios, porém sem nada muito romantizar.

Mudaram-se à mesa de Cristina que entornava espumante e a cada taça virada ficava ainda mais estrábica e disparava sobre a mesa seu mantra copta tonight-I-will-fuck-fuck-fuck batendo uma mão contra a outra em gesto vulgar de cópula, de forma que Jorge em seu íntimo se escandalizou bem.

O namorado de Anne baixou no bar e carregou-a pra dançar.

Momento sublime de Jorge e Cristina a sós.

A septuagenária pediu encarecidamente que Jorge abandonasse a mesa antes da chegada do paquera trintão: Ahmed é bofe ciumento, deus-nos-livre se vir você pelejando em cima de mim, não queima meu filme, seu moço, volta pra barra fingindo que nunca mais me viu.

Jorge comprou um charuto e foi espantar sua caretice com os pernilongos do jardim.

Rebeca e sua inesquecível visita de médico ao Taj Mahal

Visita de médico ao Taj Mahal

Rebeca planejou visita expressa a Nova Délhi e Agra. Sou avessa a perrengues, nem passa perto da minha lista uma Índia não confio em comida e água e desserviço de quinto mundo.
Porém Rebeca enciumada do passeio da melhor amiga mudou de ideia. Vou de circuito básico, fim de semana nos arredores de Paris, depois compras em Dubai, e por fim um bate-volta pra Índia.

Rebeca não topava com o destino, apenas sonhava o Taj Mahal, quando aos quinze se deliciou numa compilação de contos de As mil e uma noites. Na capa figurava o mausoléu indiano talhado em mármore branco, precisava daquele troféu.

Rebeca antenada sabe que o Taj não se relaciona diretamente à história de Sherazade, pelo simples fato de que o monumento ainda não resplandecia às margens do rio Yamuna quando o clássico da língua árabe já havia amanhecido para as letras.

Rebeca lera tudo sobre o Taj no imaginário e ideal estético e arquitetônico da Pérsia, parte significativa da arte muçulmana que engloba inclusive o mundo árabe. Só não quero sentir cheiro de especiarias suor chá preto e fezes de ratos e outros.

Rebeca pensava horrores da Índia.

Do aeroporto ao hotel no Jaguar exclusivo do transfer, tudo em constelações de no mínimo seis estrelas, uma noite em Nova Délhi, no dia seguinte day trip para Agra, volta direto ao aeroporto, nenhum minuto mais no subdesenvolvimento.

O que a gente não faz só pra ticar um país no mapa, esse aeroporto dá um banho no de Guarulhos e esse povo esquisito que nem sabe o que é banho, que cheiros embriagam meu nariz, menos mal que fico quase nada neste pardieiro, tomara que não chova porque assim minhas fotos hão de brilhar no instagram, ai calor amazônico que não me abandona nem em viagem de férias liga o ar condicionado no máximo please eu só mereço o máximo daí faço check-in expresso pois tudo está expresso nessa viagem, desmaiei na king size e despertei de rosto afogueado com o sol sobre uma cidade verde, esse sonho de Nova Délhi nem parece capital da Índia de tão limpinha nem parece a África essa cidade britânica com parques britânicos emaranhados por ruas em direção inglesa, comecei a me trair e até a gostar cadê o Jaguar que dentro em três horas estarei em Agra finalmente estrada boa de interior paulista isso que a amiga me garantiu, passa antes embaixada brasileira aqui, representação americana ali esses diplomatas funcionários públicos sórdidos que passam muito bem a vida com dinheiro dos meus impostos.

Rebeca só não contava que antes de cair na pedagiada, veria através da janela um povo sofrido se amontoando sobre a capota do carro. Ela gritou famélicos ralhou aleijados encrustando-se no carro babam e bafejam e se humilham até se refestelam sobre o vidro o senhor nem pense em abrir a janela seu motorista pelamor quanto tempo resta até o pedágio ai se arrependimento matasse pelamor queria teletransporte à galeria Lafaiete ou o Printemps pra que fui inventar moda mon dieu pra quê instagram pra quê.

Dois minutos à espera do semáforo sob um viaduto de acesso bastaram para que Rebeca se obrigasse a ver a miséria material que tanto evitara nos caminhos a seus condomínios pelo Brasil.

Depois de cruzar a rodovia dos bandeirantes da Índia, Rebeca teve de encarar outros intestinos da pobreza indiana na entrada da cidade de Agra, onde triunfa o Taj. Eles cospem de cima do tuc-tuc um líquido marrom de tabaco e no lixo fartam-se vacas cães patos macacos acho que nem ser humano falta ao festim desses detritos e eu nem consigo ver ainda o Taj lindo e branco o meu Taj olha que rico que quase o beijo.

Rebeca viu o Taj. Mas Rebeca na fila antes de adentrar o Taj teve um ataque de pânico e não me toquem não me relem os corpos mãos roupas sujas suadas e trêmula fica minha foto e estou trêmula a ponto de pronto não quero mais vou-me já que está pingando e já vim vi e chega.

Rebeca engana hoje em dia todas as amigas que adoram ser logradas, que Rebeca amou sua visita de médico à Índia.

***

A “coroa dos palácios” é um significado possível para Taj Mahal. Mas não o explicita absolutamente, posto que não há tradução que descreva qualquer objeto em sua plenitude; apenas a poesia nos auxilia na recriação das metáforas que reabitam em nós sensações similares às pretendidas pelo artista – sejam tais sinestésicas, quiméricas, inconscientes… Mas isso ainda é pouco. Porque esta espécie de beleza sobrenatural só pode ser interpretada à luz da paixão e dos amores obsessivos, como nos grandes mitos: de Píramo e Tisbe, Inês de Castro e Pedro I, Romeu e Julieta… E do príncipe Shah Jahan e sua terceira esposa Mumtaz Mahal. Após perdê-la no parto do 14o. filho, reza a lenda que ele ficou grisalho do dia para noite e não descansou até erigir a ela este mausoléu celestial. Enfim, é algo por que valha a pena arrepiar-se.

Nepal: para além do mito de Shangri-la

Viajamos, também, porque precisamos constatar que nos equivocamos sobre muitos aspectos da vida, principalmente os que nos são dados a ver apenas pela ficção, que depois são reforçados pelo narcisismo nosso de cada dia.

Antes de visitar o Nepal, nutria uma expectativa fantasiosa sobre o que encontrar no país que escala o teto do mundo. Imaginava um Shangri-la budista nas faldas da caixa d’água da Ásia, o Himalaia, certamente por influência do clássico americano Horizonte Perdido (Lost Horizon, 1937) de Frank Capra, com que tantas vezes sonhei nas sessões de filmes em madrugadas dos anos 1980.

Felizmente encontramos algo mais saboroso que o doce estereótipo cinematográfico: constituído pelas mais diversas nuances, o Vale de Catmandu encanta, decepciona e assombra o visitante que não supunha tamanha diversidade cultural.

Há sete aglomerados de construções e monumentos que dão à região do vale o pomposo título de patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO, edifícios que registram a rica herança de uma das poucas regiões do mundo que nunca foram colonizadas por europeus. Seus feitos históricos e artísticos nos foram legados por meio das praças Durbar de Catmandu, Patan e Bhaktapur, as estupas budistas de Swayambhu e Bauddhanath, além das joias hindus: os templo de Changu Narayan e Pashupatinah.

Às margens do sagrado rio Bagmati fica o Templo de Pashupatinah, dedicado ao deus Shiva. Ali acontecem os funerais, nos quais os falecidos recebem sua última homenagem: primeiro molham seus pés e cabeça nas águas sagradas, para depois incinerá-los na pira funerária, ao lado das demais cremações. Horas depois, os ossos ainda resistentes ao fogo são triturados e, juntamente com as cinzas, misturados e arremessados às águas, desemboque final de todos.