A casamenteira de Quéops

A casamenteira de Quéops

Havia dois anos que Dona Regina comparecera a um duríssimo encontro com a depressão, espécie de coma da vontade das alegrias, e desde então não lograva despedir a indesejável visita do ensolarado apartamento a poucos passos do areal do Gonzaga. O devotado marido fora ceifado numa saída de banco em Santos, onde ambos aposentados se refugiaram após conquistar seu eldorado no interior de São Paulo, de onde regressaram pelo caminho do mar, rumo ao mesmo porto que os recebera pequerruchos nos anos 1950, com o justo regozijo dos que galgaram a Muralha e viram correspondidas suas primeiras expectativas. Depois da tragédia pintada em cores berrantes do trópico local, a pobre mulher perecia na desesperança das hécubas, desancada de descendentes, pois não fora agraciada com as bênçãos de Cibeles.

Felizmente a melancolia tirou dia de folga quando a vizinha Iolanda, insistente qual pregadora cristã de porta em porta, a arrastou para um bate-chinela inaugural da melhor idade num clube reformado adjacente à orla. Na falda do salão de baile, Dona Regina enturmou-se na mesa de convivas entusiasmados pelo carisma de Iolanda, que sentou a viúva estrategicamente ao lado de outro viúvo, o senhor Alcides, gafieira de mão cheia e conversador que lhe fez a corte numa prosa que pronto coriscou para o assunto de viagens, passatempo favorito daquela patota de seniores. Nunca me encorajei de entrar no avião, seu Alcides, e depois de velha que não me enfuno dessas ousadias, Que nada, minha dileta, se segurar sua mão tenaz a ponto de não desgrudar, o sonho da senhora principia antes mesmo de dormitar com o mantra calmo do motor e o embalo que reproduz a trepidação leve, Sabe que não tem precisão de me chamar senhora, Alcides, Que bom que pra você sou só você também.

Pela primeira vez Dona Regina não experimentava a culpa do primeiro estágio da viuvez, assim não se censurava por prazeres não partilhados com seu querido e finado; mesmo não bailando pelo salão naquele ocaso de sábado, uma fresta na persiana permitiu que o sol lhe lambesse uma ferida da ausência, labareda tépida que forjou em seu rosto sulcado pelas enxurradas do luto um novo sorriso. Também por prima ocasião, Iolanda testemunhou a alvura dos dentes legítimos na boca da amiga, e mais que um calor de abrasar longos meses de eclipse n’alma, o inesperado convite de Alcides para que a ex-professora de educação artística se juntasse ao grupo que projetava um cruzeiro pelo Nilo egípcio fulgiu delicado como uma aurora no inverno boreal – insuflou-lhe uma brasa esquecida de vaidade. Dona Regina aquiesceu, e Iolanda sentiu firmes os músculos de seus dons de casamenteira.

Diferente da suspeita inicial, nossa viúva por fim alegre não temia o sonho de Ícaro, absolutamente, tanto que se empolgou em alarido mental no preciso momento em que o Boeing descolou-se da pista de Guarulhos e flutuou urubu-rei. O próprio Alcides parecia mais apreensivo que a possível namorada futura, quiçá por isso não tenha quisto soltar sua mão durante o restante da jornada aérea.

Iolanda mostrou-se uma cicerone perfeita logo na área de trânsito do aeroporto de Istambul, de onde embarcariam numa segunda aeronave ao Cairo, auxiliando seus amigos e, em especial, o duo de viúvos como se fosse a filha coletiva do grupo.

A poucos minutos da aterrissagem, assim que o piloto anunciou aos ocupantes das janelas à esquerda que estes eram os eleitos na loteria dos assentos, com a visão das Grandes Pirâmides na aproximação máxima de um Google Maps sobre a árida esplanada, Dona Regina emocionou-se taquicárdica e em arrepio de beijo suave no pescoço, Eu que não imaginava acariciar Quéops, Quéfren e Miquerinos com o olhar além da telinha em alta definição num History Channel eu que nem morta amontaria estes dragões a jato eu que de mãos dadas com esse momento com este este hom… E antes que o remorso como punição embaciasse sua vista, ele se adiantou e disse que os dois companheiros apartados de tão sublime instante deveriam estar radiantes por eles, caso uma consciência além-túmulo sobrevivesse ao desaparecimento como cultuavam os egípcios antigos.

Com o amadurecimento dos dias, outras pequeninas lindezas se acumularam na viagem quais grãozinhos de areia que em bodas com Éolo desenham as formidáveis dunas do Saara, e a vitória da intuição de Iolanda coroou-se no interior da magnífica Pirâmide: na estreitíssima entrada que dá acesso ao monumento, Seu Alcides descobriu que temia um terremoto, E se um soterramento me calasse o bom humor sob estes milhões de toneladas em pedra, bem quando o Amor ponteiro voltou a me flechar, diacho de destino essa preocupação traçada em mãos mais suadas que garrafa congelada transudando a quarenta graus na enseada do Zé Menino, vista turva perna bamba vixi-maria que escadaria íngreme sobe bom menino Alcides, meu filho, finge que tá tudo bem que quanto mais rápido for mais rápido você volta.

Dona Regina notou à beira do sarcófago vazio, no âmago claustrofóbico de Quéops, que ela suava de amor – e seu arfante namorado, de pavor. Em retribuição ao gesto que a salvou na fobia no voo, ela segurou-lhe a mão o mais junto que pôde das cavidades latejantes do próprio peito, enquanto lhe acalmava cantarolando uns versinhos de Aida “questo fervido amore che oppressa e schiava, come raggio di sol qui mi beava…” até a saída do túmulo.

Eles já regressaram ao Brasil e no fim deste mês vão à Igreja da Natividade.

As pegadoras de Luxor

Ou as turistas do amor no Egito

Jorge estava odiando Luiza à hora do jantar naquela ribeira coaxante do Nilo, a um pulinho do centro de Luxor. Principiou-se a sinfonia de minaretes e grilos, cacofonia e fuga para sua entrega à melancolia, que um vago arrependimento lhe abatera pela primeira vez ali à luz de velas vermelhas assombradas por mosquitos com sua esposa inda acesa. Cedi a um casamento morno pela promessa de salvação com a mulher boa sincera farta de bossa que ora me afastou de nefastos caminhos, isso podia ter destruído minha reputação de jurista antes mesmo de ser aprovado em exame público, era tão linda minha egiptóloga professora da USP no princípio do afeto quando me livrou de becos e recaídas na retorta noite de São Paulo é ela que age agora de modos tão-não-sei por-que-tais ela passou os dois últimos dias afoita em nossa primeira viagem longa e eu não posso nem quero sentir-me um bichinho ingrato enquanto ela for minha for minha guia de primeira classe fez-que-fez para visitarmos os templos todos num raio de cento e cinqüenta quilômetros a partir deste lugar, sinto culpa por não partilhar de seu fogo por Ramsés II e a rainha da paz Hatshepsut, custa-me prestar-lhe atenção quando interpreta os hieróglifos dos muros incandescentes amarelos, de seus olhos semicerrados pela luz do deserto, das minhas mãos desidratadas em calor argiloso de agosto, ai como arde o desamor em flor, não sei bem se está clara a culpa o desinteresse e essa ausência da palavra cortês, qual me denunciei na véspera da boda no tumulto de um sonho cruel no qual eu fugia de seu farto colo nalguma hora agá gritando-lhe com indiferença que não a desejava mais feito tantos homens que se queixam no pós-coito da mulher outrora amada.

Por sua vez, Luiza fingiu não captar o tédio nu-outro e discorreu com força do entusiasmo sobre o passeio em balão tapete mágico no qual o casal surfaria as primevas horas que abrem alas à dedirrósea aurora seguinte daí ele deu de ombros que não repousaria direito por causa do passeio em balão na madrugada que em breve rebentaria enfim ele clamou do tempero da comida, que injusto ela logo defendeu suas escolhas que era este o melhor restaurante da gastronomia local fruto do casamento feliz de um mestre-cuca egípcio cansado do caos do Cairo e sua chef irlandesa apaixonada pelos da margem direita do rio-dádiva, assim deu que ele arrebatou do ar o ataque sutil da fêmea ofendida e pediu a conta sem sobremesa café ou chá açucarado de hortelã em demasia. Caminharam até o jardim do hotel flanqueando a barranca do Nilo como em filme mudo estrelado por múmias. Ela finalmente chiou do calor e ascendeu ao quarto tendo por álibi o ar condicionado e a precisão de descansar para a vindoura aventura nos ares, enquanto ele só carecia de outra dose cavalar de tônica-e-gim praguentar a noite insone que teria pela frente por fim.

No entanto este Jorge confuso não esquadrinhava o bar à procura de mais mulher simplesmente, buscava outra companhia para esquecer a dúvida acesa de um vaga-lume à deriva num ilhéu de separação, se ela dorme e desperta automática como médico plantonista, para mim, virar noite é preferível a madrugar às quatro em ponto da matina, depois aqui na barra do bar o papo com Mahmoud brilha sempre no vozerio das alegrias, estudo árabe com eles hoje decorei ámar arbatashar, lua quatorze, formoso jeito de encantar a menina pois que ela emprestou a lindeza do plenilúnio em décimo quarto dia do islâmico mês.

Naquele instante avizinhou-se de Jorge uma senhorita Anne, mais adorável pela simpatia que pelo padrão-beleza ocidental, atarracada que podia ser considerada outra espécie de lua cheia: escocesa de frugal cabeleira ruiva em rostinho redondo de pele vermelha e risonha, apresentadora de TV em Glasgow, excitando mais e mais sua verve a cada gole de um álcool forte e assim me narrou sua paixão por Ahmed rapagão robusto que ela visitava por oitava vez naquele ano por sorte voava-se direto do Reino Unido ao Reino dos Faraós durante plena revolução dos jasmins sem cruzar pela Praça Tahrir e com ele ela forjava planos de habitar perto do Vale dos Reis compraria um dois-quartos em frente ao rio-deus pela bagatela de trinta mil libras logo em seguida chegou sua amiga Cristina alemã loura septuagenária, também pegadora de egípcios, porém sem nada muito romantizar.

Mudaram-se à mesa de Cristina que entornava espumante e a cada taça virada ficava ainda mais estrábica e disparava sobre a mesa seu mantra copta tonight-I-will-fuck-fuck-fuck batendo uma mão contra a outra em gesto vulgar de cópula, de forma que Jorge em seu íntimo se escandalizou bem.

O namorado de Anne baixou no bar e carregou-a pra dançar.

Momento sublime de Jorge e Cristina a sós.

A septuagenária pediu encarecidamente que Jorge abandonasse a mesa antes da chegada do paquera trintão: Ahmed é bofe ciumento, deus-nos-livre se vir você pelejando em cima de mim, não queima meu filme, seu moço, volta pra barra fingindo que nunca mais me viu.

Jorge comprou um charuto e foi espantar sua caretice com os pernilongos do jardim.